NATURALISTAS VIAJANTES – PARTE 1

O Príncipe e o Botocudo

30 de maio de 2016

Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, o príncipe naturalista alemão que redescobriu o Brasil de Porto Seguro e adjacências.

ALEMANHA: MOSAICO DE REINOS

Antes da unificação política ocorrida em 1871, a Alemanha de hoje era um mosaico de reinos, ducados e cidades livres. Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, naturalista, etnólogo, explorador e príncipe de Wied-Neuwied (1782-1867), nasceu no principado de Neuwied, capital da província de Wied, então já incorporada à Prússia.  O rio Reno corta a cidade de Neuwied e empresta seu nome à região: a Renânia. 

Oitavo filho de uma série de dez, estava distante dos privilégios do primogênito. Após seus estudos na Universidade de Goettingen, alistou-se no exército prussiano e participou da liberação de Paris do jugo napoleônico em 1814. Ao deixar o exército, em 1815, planejava viajar pela Rússia. Influenciado por seu ex-professor Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), antropólogo alemão responsável pela classificação dos seres humanos com base no formato do crânio e na cor da pele, e por Alexander von Humboldt (1769-1859), também ex-aluno de Blumenbach que ficara conhecendo em Paris, Maximiliano redireciona seu objetivo. O professor Blumenbach, por sua idade e compromissos acadêmicos, esperava que o discípulo coletasse dados sobre os nativos sul-americanos para seus estudos e Humboldt ansiava por relatos confiáveis sobre a parte da América do Sul que o governo português o proibira de visitar.

Príncipe-naturalista

O príncipe-naturalista parte para o Brasil no veleiro Janus em 15 de maio de 1815, acompanhado por quatro súditos, dois humanos e dois caninos. Em algum lugar do Atlântico, durante a travessia, assume sua identidade secreta e desembarca no Rio de Janeiro em 15 de julho sob o pseudônimo de Max von Braunsberg.

 

O Príncipe-naturalista Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied e o índio botocudo Joachim Quäck

Primeiro Registro no Rio

No Rio, registra um costume inconveniente que persiste cada vez mais arraigado em nossa sociedade, em comemorações festivas de qualquer natureza: “(…) as festas religiosas, as procissões e outras cerimônias parecidas são frequentes; é um costume singular em todas essas solenidades atirar, nas ruas, em frente às portas das igrejas, fogos de artifício com grande estrondo e alarido.”
 
Durante sua curta estada no Rio de Janeiro, visita a aldeia indígena de São Lourenço, hoje um bairro de Niterói. Encontra os moradores ocupados na fabricação de vasos de argila. Visita também a ‘armação das baleias’, estabelecimento de pesca da baleia no Rio. 
 
Demora-se no Rio apenas o tempo suficiente para preparar sua expedição pelo litoral brasileiro. Justifica sua decisão pela oportunidade de observação dos habitantes primitivos “em estado selvagem, sem terem sido perturbados pelos europeus que gradualmente vão se espalhando em todas as direções. (…) é aí que podem ser observados esses povos em seu estado original”.
 
 
Carregando um burro para viagem
 
 
Primeira Expedição
 
No dia 4 de agosto, parte de São Cristóvão, com uma tropa de dezesseis animais e dez homens contratados, entre ajudantes e caçadores. Dois naturalistas alemães, Friedrich Sellow (1789-1831) e Georg Freyreiss (1789-1825), participam da expedição. Sellow, botânico protegido por Humboldt e que viera para o Brasil em 1814, tinha planos de viajar pela região norte com o zoólogo Freyreiss. Maximiliano e Freyreiss partilham do entusiasmo pela ornitologia. Provavelmente Humboldt, mesmo à distância, foi o elo que possibilitou a expedição conjunta dos três naturalistas. Nas palavras do príncipe, “dois  jovens alemães, Srs. Sellow e Freyreiss, que conheciam muito bem os costumes e a língua da região, prometeram acompanhar-me na minha viagem ao longo da costa oriental até Caravelas, auxiliando-me nas pesquisas. ’
 
Curiosamente, o cozinheiro da expedição tem o sugestivo nome de Antônio Tira-Cru, que evidencia sua ansiedade em se livrar dos afazeres do caldeirão para acompanhar as caçadas. Foi representado pelo príncipe em uma aquarela, de costas com sua espingarda, um chifre de pólvora e o cantil.
 
Na serra do Inoá, a noite tropical o fascina: “Ceamos sob a constelada abóbada dos trópicos; a alegria sazonou a comida, e os lavradores das cercanias que voltavam à casa, observaram atentamente aquele estranho bando de ciganos”.
 
Na freguesia de Maricá, a chegada da comitiva causa sensação: “Os moradores de uma casa um pouco afastada, diante da qual paramos, fecharam as portas cuidadosamente. Todos os vizinhos também se reuniram para nos contemplar, embasbacados; mas, quando começamos a esfolar e a preparar os animais mortos durante o dia, moços e velhos sacudiram as cabeças e riram-se ruidosamente dos parvos estrangeiros. As espingardas de dois canos, para eles aparição totalmente nova, interessavam-nos ainda mais que nós próprios”.
 

Todos se interessavam muito pelas espingardas de dois canos. Uma novidade!

 

Anota as atividades da preparação do açúcar e da farinha de mandioca. Eventualmente, quando o tempo está úmido, utilizam os tachos da farinheira para secar as plantas coletadas. No aldeamento indígena de São Pedro dos Índios, percebe que “Os meninos têm ótima pontaria com os pequenos arcos feitos da madeira do airi, chamados ‘bodoques’”.

 
 
O Índio Padre
 
Algumas de suas anotações são relatos ouvidos do companheiro Freyreiss durante a preparação da ‘bóia’, como a história do padre índio arrependido: “Muitos deles ainda não se libertaram das velhas crenças, e os padres se queixam de que são maus cristãos. A profissão eclesiástica lhes foi aberta, porém bem poucos a abraçaram. Havia em Minas Gerais um padre índio, pertencente a uma das tribos mais selvagens. Era um homem geralmente estimado e viveu muitos anos em sua paróquia; de repente, entretanto, desapareceu; descobriu-se que jogara fora as vestes clericais e correra, nu, ao encontro dos irmãos das selvas, entre os quais teve várias mulheres, depois de parecer, anos a fio, fervoroso crente das doutrinas que pregara”. 
 
Sobre o costume de ‘comer de arremesso’, que as pessoas mais velhas de nossa geração ainda puderam testemunhar, e o gosto pelo mingau, palavra e invenção indígena, comenta: “Os portugueses adotaram muita coisa deles, e entre outras, a preparação da farinha de mandioca. (…) Já naqueles primeiros tempos, preparavam o mingau engrossando o caldo de carne com farinha de mandioca. Os portugueses também adotaram isso. Durante as refeições, colocavam do lado uma porção de farinha de mandioca seca, e iam-na jogando em punhados para a boca com tal agilidade, que não perdiam o mínimo grão. Esse costume ainda se observa entre os descendentes, bem como entre os lavradores portugueses”.
 
 
 
Uma tropa em marcha, como eram as expedições naquela época.
 
 
CABO FRIO
 
Em Cabo Frio, antecipa uma prática que faz parte da cartilha de políticos em época de eleição: “Os viajantes devem assistir às missas; porque, se assim o fizerem, lograrão muito melhor conceito por parte dos moradores. Sempre nos trataram com gentileza e atenção quando respeitamos esse costume, mostrando manifesta frieza e aversão, quando não fomos à igreja”.
 
Uma cobra muçurana, que se alimenta de outras cobras, principalmente de cobras venenosas, enriquece sua coleção: “Descobri no tronco oblíquo de uma árvore, uma cobra cor de chumbo (..) que descreverei com o nome de ‘Coluber plumbeus’. (…) Mandei que um dos meus caçadores a matasse, mas só com grande dificuldade conseguimos convencer o negro, carregador das plantas colecionadas, a transportar esse grande réptil, inteiramente inofensivo, que amarramos com um pano à extremidade de uma vara comprida, apoiada aos ombros. Após ter vencido bom percurso, o negro sentiu um leve movimento da carga, e ficou tão apavorado, que a atirou fora e fugiu”. . Atualmente a muçurana, também conhecida por boiru ou limpa-campo, é descrita como Clelia clelia.
 
Depois da travessia do Rio Macaé, chega à Vila de São João de Macaé, onde as pulgas e uma infinidade de Pulex penetrans, o bicho-de-pé, incomodam os viajantes. Detalha a técnica para a retirada do inseto e como desinfetar o local com pó de tabaco. Anota ainda: “A dona da cabana em que me alojei era uma criatura loquaz e jovial, de tez descorada, vestida muito ligeiramente e trazendo sempre à boca um cachimbo, como a maioria das mulheres das classes baixas do Brasil”. (…) Mal raiara o dia nas cabanas apinhadas, e já os pescadores diziam as suas preces com grande fervor, depois do que banharam as crianças em água morna, prática usual entre os portugueses e, segundo parecia, impacientemente aguardada pela miuçalha”.
 
Sobre o hábito de fumar do brasileiro, comenta: “Os brasileiros fumam, de preferência, cigarros feitos de papel, colocando-os atrás da orelha. Essa maneira de fumar não foi levada ao Brasil pelos europeus, mas veio dos Tupinambás e de outras tribos do litoral. Costumavam estes enrolar certas folhas aromáticas numa folha maior, acendendo-as na ponta. (…) Entretanto, prefere-se geralmente, entre todas as classes do povo brasileiro, tomar rapé a fumar; com efeito, o escravo mais indigente possui sua caixa de rapé, de folha de Flandres ou de chifre, em geral uma simples peça de corno de boi tampada com uma rolha de cortiça”. 
 
Chega a São Salvador dos Campos dos Goitacás, “(…) onde vimos os primeiros jornais desde a nossa partida do Rio. Trazia a importante notícia da derrota do exército francês em Belle Alliance, recebida com grande satisfação pelos habitantes da vila”. Belle Alliance é o nome pelo qual os alemães conhecem a batalha de Waterloo, em que Napoleão foi derrotado em junho de 1815 pelos exércitos aliados.
 
 
 
 
Dois caçadores portugueses
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO: Na edição 268, de julho, 
o encontro com os índios PURIS. 
O príncipe Maximilian fala sobre os índios e conta as aventuras 
da viagem quando deixa Cantagalo para adentrar 
a Província do Espírito Santo.