Naturalistas viajantes - parte 2

O príncipe e o botocudo

5 de julho de 2016

O príncipe naturalista alemão, Maximilian Alexander, passa por São João da Barra

Indios Puris, em sua cabana
 
 
 
COMPRA DE UM MENINO PURI
 
Visita ao aldeamento de São Fidélis. Eis alguns de seus apontamentos sobre os índios Puris: “A igreja é grande, clara e espaçosa, e foi pintada pelo padre Vitório, morto havia apenas dois meses. Esse missionário promovera zelosamente o bem-estar dos índios, que lhe respeitavam muito a memória, ao passo que não pareciam amigos do padre atual. De fato, expulsaram-no certa vez, alegando que não lhes podia dar instrução, porque era pior do que eles”.
 
“Presenteamos as mulheres com rosários, por que tinham predileção, embora arrancassem a cruz, e se rissem desse emblema sagrado da Igreja Católica; mostram, também, grande preferência por gorros de lã vermelha; facas e lenços vermelhos, trocando prontamente os arcos e flechas por esses artigos; as mulheres são ávidas por espelhos, mas não dão valor às tesouras”.
 
“Todos os selvagens costumam, frequentemente, oferecer à venda grandes bolas de cera, que juntam quando colhem mel silvestre. Utilizam essa cera escura na confecção dos arcos e flechas, e também para vela, que vendem aos portugueses. Os tapuias fazem essas velas, que queimam muito bem, enrolando um pavio de algodão em torno de um fino pau de cera e, logo depois, rolando todo ele com força. Dão grande valor às facas, que penduram ao pescoço por um cordão, deixando-as pendentes nas costas: consistem, em geral, de uma peça de ferro que eles afiam constantemente nas pedras, conservando-as muito cortantes. Se lhes dão uma faca, geralmente tiram fora o cabo e fazem outro de acordo com o próprio gosto, colocando a lâmina entre dois pedaços de pau e ligando-os solidamente com um cordão”.
“(…) logo chegamos às choças de numerosos selvagens, onde fomos de novo atacados por uma quantidade de cães esqueléticos. Diz-se que os Puris receberam esses animais, a que dão o nome de ‘joare’, dos europeus e eu os encontrei entre todas as tribos nativas da costa oriental”.
 
“O Sr Freyreiss entrou em negociação com um dos Puris para a compra de um filho, oferecendo-lhe diversos artigos. As mulheres consultaram-se alto, no tom cantante que lhes é peculiar, algumas com gestos de desaprovação; a maioria das palavras terminava em ‘a’ e eram arrastadas, do que resultava forte e singular vozerio. Era evidente que elas não se queriam desfazer do menino; mas o chefe da família, um homem idoso, grave e de bom aspecto, disse umas poucas palavras cheias de ênfase e ficou, depois, durante algum tempo, olhando para o chão, perdido em pensamentos; ofereceram-lhe, sucessivamente, uma camisa, duas facas, um lenço, uns fios de contas de vidro colorido e alguns pequenos espelhos; não pode resistir à tentação; entrou na floresta e em pouco voltava, trazendo pela mão um menino, que era, porém, mal conformado e tinha um ventre muito dilatado, não sendo, por isso, aceito; trouxe logo um segundo que se aceitou. Foi inacreditável a indiferença com que o menino soube do seu destino. Não mudou de fisionomia, nem mesmo se despediu dos amigos, mas, ao contrário, montou alegremente atrás do Sr. Freyreiss”.
 
“A comida é-lhes o desejo mais premente; seus estômagos precisam estar sempre cheios; comem, por isso, com rapidez fora do comum, olhares ávidos, a atenção inteiramente voltada para o alimento. Em compensação diz-se que suportam a fome por muito tempo”.
 
“Estavam, por isso, de todo encantados conosco, estrangeiros, porque os tratávamos com brandura e delicadeza; também se aperceberam de pronto, pelos nossos cabelos claros, de que pertencíamos a outra nação. Chamam, aliás, a gente branca, indistintamente, ‘raion’”.
 
“Cantagalo, fundada por alguns paulistas que andavam em busca do ouro, permaneceu durante muito tempo oculta nas florestas, até que, por fim, foi descoberta graças ao canto de um galo, donde o nome”.
 
“O rapaz que o Sr. Freyreiss comprara na véspera foi conduzido até eles, para se ver a impressão que causaria aos parentes: mas, para nosso espanto, nenhum se dignou lançar-lhe sequer um olhar; nem este olhou para os pais e parentes, sentando-se entre eles com perfeita indiferença”.
 
 
 
 
NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO
 
Em São João da Barra, verifica que os jacarés são muito comuns no Rio Paraíba. Atravessa o rio Itabapoana e adentra a província do Espírito Santo. O conhecimento do rapaz indígena é providencial: “O calor era intenso e tínhamos muita sede, que o nosso jovem Puri ensinou a mitigar de maneira infalível. Arrancam-se as duras folhas centrais das bromélias em cujos cantos se coleciona a água da chuva e do orvalho; e esse néctar é sorvido levando-se rapidamente a folha à boca”.
 
 
 
 
A tropa completa de uma longa expedição que, em 1815, por dois anos e 29 dias percorreu toda a costa brasileira do Rio de Janeiro a Salvador.
 
 
 
Passa por Piúma ou Ipiúma, pela Vila Nova de Benevente e atravessa o rio Iritiba. De acordo com a grafia da época: “Perto de Miaipé, fica a vila de Guaraparim, aonde se vai ter por um caminho sobre montes rochosos, que entram pelo mar. (…) Vila Velha do Espírito Santo, pequena e miserável vila aberta, construída quase toda numa praça. Numa alta colina coberta de vegetação, junto à vila, ergue-se o famoso convento de Nossa Senhora da Penha, um dos mais ricos do Brasil, dependente da abadia de São Bento do Rio de Janeiro. A vila é formada de baixos casebres de barro e decai a olhos vistos, desde que se fundou a vila de Vitória, na margem norte, à meia légua de distância. (…) A cidade de Nossa Senhora da Vitória é um lugar limpo e bonito, com bons edifícios construídos no velho estilo português, com balcões e rótulas de madeira, ruas calçadas, um câmara municipal razoavelmente grande, e o convento dos jesuítas, ocupado pelo governador, que tem, à sua disposição, uma companhia de tropa regular”.
 
É apresentado a um parasita quase desconhecido nos centros urbanos: “Existe no Brasil outro inseto que deposita os ovos no tecido muscular ou debaixo da pele, até do próprio homem; depois da picada deste animal sobrevém uma pequena dor local, o lugar começa a inchar, até o momento em que os naturais, perfeitamente conhecedores desta nociva praga, extraem uma pequena larva branca e alongada, cicatrizando-se depois a ferida”. Refere-se ao berne, larva de uma mosca silvestre da família das éstridas. Na verdade, a mosca berneira terceiriza a deposição das larvas. Utiliza outras moscas como portadoras até o hóspede adequado, gente ou bicho. 
 
A musicalidade do português combinada com o ritmo do escravo africano permite que o príncipe vislumbre a riqueza cultural, que o tempo se encarregaria de apurar: “(…) e como todos os habitantes tivessem muito gosto pela música, fomos, à tardinha, agradavelmente entretidos com música e dança. O filho do hospedeiro, que era muito hábil na fabricação de guitarras (violas), tocava, e o resto da meninada dançava o batuque, entregando-se a estranhas contorções do corpo, batendo palmas e estalando dois dedos de cada mão alternadamente, imitando as castanholas dos espanhóis”.
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO: Na edição 269, de agosto, o príncipe Maximilian 
explora o rio Doce e adentra a Província da Bahia, por Caravelas, 
Alcobaça e Porto Seguro. Encontra com os índios Pataxós.