NATURALISTAS VIAJANTES

O PRÍNCIPE E O BOTOCUDO – Parte 4

1 de setembro de 2016

O Príncipe Maximilian encontra com os índios botocudos e consegue uma preciosa encomenda para seu ex-professor na Alemanha: o crâneo de um botocudo.

 
BOTUCUDOS E A NATUREZA
 
Em um trecho encachoeirado, testemunha a simbiose entre o índio e a natureza: “Enquanto minha gente se ocupava com a canoa, olhei casualmente para a margem oposta e, com grande espanto, vi um corpulento e robusto botocudo, sentado com sossego, de pernas cruzadas. (…) Mal se distinguia o vulto bruno-acinzentado entre as rochas cinzentas; essa a razão por que esses selvagens se podem aproximar facilmente sem serem percebidos, e por que os soldados, em outras paragens, quando em guerra com eles, precisam de extrema cautela. Pedimos-lhe que viesse a nado ao nosso encontro; mas ele nos deu a entender que a corrente estava demasiado rápida e que voltaria ao Quartel do Salto, não muito longe daí, onde nos esperaria”. 
 
 
 
 
O príncipe Maximilian, com muito cuidado, consegue seu grande tesouro: o crâneo de um índio botocudo para levar para os estudos de seu ex-professor.
 
Atinge o Quartel do Salto e consegue obter um crânio de botocudo para presentear seu ex-professor: “A curta distância das casas, dentro da mata, no meio de uma vegetação bela e florida, havia sido enterrado um jovem botocudo, de vinte a trinta anos de idade, um dos mais turbulentos guerreiros da sua tribo. Armados de picaretas, dirigimo-nos à sepultura e retiramos o importante crânio. Notamos, à primeira vista, uma curiosidade osteológica: o grande pedaço de pau, usado no lábio inferior, não só havia deslocado os incisivos inferiores, como também comprimira e apagara, nesse crânio novo, os alvéolos dos dentes, o que geralmente só acontece com as pessoas muito velhas. (…) Embora tomasse o maior cuidado em guardar segredo sobre a minha intenção de abrir a sepultura, a notícia em pouco se espalhou pelo quartel, causando forte sensação entre aquela gente ignara. Impelidos pela curiosidade, malgrado um secreto terror, vários se acercaram da porta do meu quarto e quiseram ver a cabeça, que eu, entretanto, escondi imediatamente na mala e tratei de mandar o mais cedo possível para a vila de Belmonte” 
 

 

Índio botocudo leva um prisioneiro para sua tribo
 
 
ESPETÁCULO: CONTENDA ENTRE BOTOCUDOS
 
Ao retornar, passa novamente por Quartel dos Arcos e registra a cena de uma contenda entre os Botocudos, verdadeiro espetáculo teatral em que os observadores neutros se alinham em semicírculo, prudentemente, fora do alcance das armas. A ilustração foi reproduzida nas várias edições dos diários do príncipe e sempre que se fala sobre os Botocudos.
 
 “(…) os soldados, um sacerdote de Minas e vários forasteiros, a que me juntei, acorreram ao campo de batalha. Por precaução, cada um levou, sob o casaco, uma pistola ou faca, para o caso de a briga virar contra nós. (…) O combate começava. De início, os guerreiros de ambos os lados soltavam gritos curtos e rudes, cercando-se como cães raivosos, ao mesmo tempo em que aprontavam os paus. (…) de súbito, dois deles avançaram, empurraram-se pelo peito, obrigando a recuar, e começando, então, a terçar os paus. Um desferiu com toda a força uma pancada no outro, sem escolher lugar; este suportou o primeiro ataque séria e calmamente, sem tugir; chegou depois a sua vez, e assim se arrumaram pauladas violentas, cujos vestígios por muito tempo ficaram visíveis nos corpos nus, sob a forma de grandes inchaços. (…) Logo que dois deles acabavam de malhar-se dessa bela maneira, outros dois se adiantavam; muitas vezes, diversos pares pelejavam ao mesmo tempo: mas nunca se agrediam à mão. (…) Enquanto isso, as mulheres também brigavam valentemente; chorando e berrando, seguravam-se pelos cabelos, esmurravam-se, unhavam-se, arrancavam-se das orelhas e do lábio inferior os batoques de pau, espalhando-os como troféu pelo campo de batalha. Se alguma punha por terra a adversária, uma terceira, que estava por detrás, agarrava-a pelas pernas, derrubando-a também ao chão, e assim se iam prostrando umas às outras. Os homens não se rebaixavam a bater nas mulheres do lado contrário, mas apenas as empurravam com a ponta dos paus ou davam-lhe pontapés nos flancos, fazendo-as rolar umas sobre as outras. Os gritos e alarido das mulheres e das crianças, vindos das malocas vizinhas, ainda mais aumentavam o efeito desse impressionante espetáculo. E por esse modo o combate durou cerca de uma hora (…) Todos nós deixamos então o campo da luta, juncado de batoques de orelha e de paus quebrados, e voltamos para o Quartel”.
 
 
 
 
O grupo passa novamente por Quartel dos Arcos e registra a cena de uma contenda entre os Botocudos, verdadeiro espetáculo teatral em que os observadores neutros se alinham em semicírculo, prudentemente, fora do alcance das armas.
 
 
 
VISITA AOS MACHACALIS
 
Regressa à Belmonte. Sob fortes chuvas, empreende nova ida até Mucuri e tem dificuldades para atravessar o Corumbau e o Cahi. No Mucuri, segundo a historiadora Miriam Junghans, Maximiliano, Sellow e Freyreiss se despedem definitivamente.
 
Ao voltar para Belmonte, desvia-se no Prado para visitar uma aldeia dos Machacalis. “Encontrei todos os selvagens morando juntos numa casa espaçosa; fazia dez anos que aí viviam e eram sofrivelmente civilizados. (…) Os arcos dos Machacalis diferem dos das outras tribos, por terem entalhado na parte anterior um sulco profundo, onde uma flecha pode ficar pronta de reserva, enquanto a outra é arremessada. (…) São altos, fortes e espadaúdos. Em geral não desfiguram muito o corpo; apenas, como os Pataxós, amarram na frente o ‘membrum virile’ com um cipó. Muitos fazem também um pequeno orifício no lábio inferior, onde, por vezes, usam um pedacinho de bambu. (…)”.
 
 
 
 
Índio pataxó com sua machadinha partindo um côco.
 
Chega de novo em Belmonte a 28 de dezembro. Maximiliano dedica um capítulo inteiro de seu diário aos Botocudos, indígenas da tribo Krenack, que se autodenominavam Engerackmung. Descreve a constituição física; o costume do uso dos batoques; a maneira de cortar os cabelos; as partes sexuais; a alimentação; os utensílios; os nomes próprios; a língua; as cerimônias; etc. 
Batoque é uma espécie de rolha de madeira usada para tampar barris de vinho. O uso de um pequeno batoque pelos índios nos lábios e nas orelhas originou o nome depreciativo dado pelos portugueses. 
 
COMPORTAMENTO DOS BOTOCUDOS
 
O príncipe explica: “A vontade do pai é que decide do momento em que a criança deve sofrer a operação e receber a ornamentação peculiar à sua tribo; isso acontece de ordinário dos sete aos oito anos, às vezes até antes. Estiram-se pela ponta o lobo da orelha e o lábio inferior, fazendo-se então neles por meio de um pau duro e pontiagudo, um orifício, onde se coloca depois um pequeno pedaço de madeira, que vai sendo pouco a pouco substituído por outros progressivamente maiores, até que os lobos das orelhas e o lábio inferior adquiram um tamanho descomunal. Este extravagante costume dá-nos uma prova evidente de extraordinária extensibilidade da fibra muscular, porquanto o lábio inferior adquire a aparência de um estreito anel em torno da placa, o mesmo acontecendo com os lobos das orelhas, que caem quase até os ombros. O batoque pode ser tirado quantas vezes o queiram, a orla do lábio ficando então caída e os dentes inferiores inteiramente a descoberto. A abertura cresce incessantemente com o correr dos anos, a ponto de os lobos das orelhas ou o lábio muitas vezes se romperem; neste caso as duas partes são atadas por meio de um cipó, reconstituindo-se assim o anel. Nos indivíduos idosos é muito comum terem uma, ou mesmo as duas orelhas rotas dessa maneira. Como o batoque dos lábios descansa de encontro aos incisivos inferiores médios, comprimindo-os e atritando-os, esses dentes caem ao cabo de algum tempo, dos vinte aos trinta anos de idade, ou senão se deformam e se deslocam”.
 
“Os botocudos têm o costume de esconder o membro viril num estojo de folhas trançadas de içara, chamadas por eles giucã e pelos português tacanhoba. (…) Cada vez que precisam satisfazer as suas necessidades naturais, o botocudo retira o referido estojo, que é depois reposto com todo o cuidado”.
 
“Um dos traços mais característicos desses selvagens é a preguiça. Indolente por natureza, o botocudo descansa em sua choça, sem nada fazer, até que surja a necessidade de alimentar-se”. 
 
Terão os baianos, Dorival Caymmi em especial, herdados essa virtude dos botocudos?
Quanto aos mosquitos, verifica que: “Tem-se feito a surpreendente afirmação de que esses insetos ávidos de sangue atacam muito mais os estrangeiros do que os nativos”.
 
AS IGUARIAS INDÍGENAS
 
Detalha a maneira dos índios caçarem e até como atiram a flecha, sempre do lado esquerdo do arco. O machado é raridade entre eles, por isso escalam as árvores mais altas e competem com as araras para conseguir os frutos da sapucaia. Apreciam larvas de alguns insetos e têm a formiga ‘tanajura’ como iguaria.
 
Usam machados de pedra para extrair o mel e a cera das abelhas nativas, para o próprio uso e para suas trocas. À época, as abelhas nativas ou Meliponíneos, principalmente a jataí, a mirim e a uruçu, abasteciam de mel nossos antepassados. O professor Paulo Nogueira-Neto, referência maior em abelhas indígenas sem ferrão, ensina que Índios, bandeirantes e caboclos adoravam a doçura do mel da jataí (Tetragonisca angustula), que ainda hoje possui muitos apreciadores. As primeiras colônias da abelha européia (Apis mellifera) seriam introduzidas somente em 1839 na Praia Formosa, no Rio, pelo padre Antônio Carneiro. 
 
Sobre os cães, novidade trazida pelos portugueses que os indígenas adotaram com entusiasmo, comenta: “Tem como companheiros magros cães dados pelos europeus. Utilizam-nos muito para caçar, mas os alimentam muito mal, motivo pelo qual são ordinariamente pérfidos e investem, ladrando, sobre os estranhos. (…) Por isso, nos seus assaltos aos destacamentos, os cães grandes eram uma das primeiras coisas que roubavam”.
 
“Cada homem tem ordinariamente muitas mulheres, tantas quantas possa sustentar (…). Os casamentos se realizam sem nenhuma cerimônia, dependendo apenas da vontade do casal e dos pais; também podem ser dissolvidos com a mesma facilidade. Na ausência do marido, a mulher pode fugir para a companhia de um outro, que tenha feito uma grande caçada, sem que daí lhe advenham consequências desagradáveis. Se, porém, o marido encontra a mulher em companhia de outro homem, castiga ordinariamente a sua infidelidade dando-lhe muita pancada, e no acesso de cólera serve-se do primeiro objeto que acha à mão, muitas vezes até de um tição ardente, fatos de que vêem abundantes vestígios no corpo das mulheres”.
 
“O casamento dá às vezes aos botocudos muitos filhos, que, pelo menos enquanto pequenos, são muito queridos e muito cuidadosamente tratados. (…) Costumam tratar os filhos com benevolência, isto é, fazer-lhes todas as vontades; só o seu choro lhes causa impaciência”.
 
JOGO DA PÉLA
 
O jogo da pelada já aparece entre as brincadeiras dos nativos: “Entre os adultos observa-se algo de semelhante ao jogo da péla. Usam para este fim uma grande bola feita com um couro de preguiça a que tiram a cabeça e os membros, cosem as aberturas e enchem depois de musgo. Todo o grupo, muitas vezes numeroso, se distribui em círculo, cada um jogando a bola para outro, sem deixar que caia no chão”.
 
“Os banhos frequentes e o exercício contínuo dão ao corpo uma perfeição de que conhecemos apenas o nome”.
 
“Morrendo um botocudo, enterram-no logo na própria choça, ou nas suas proximidades, abandonando-se depois o lugar, para construir outra habitação. O defunto, no primeiro dia, é chorado com gemidos pavorosos, as mulheres principalmente comportando-se como loucas; já no dia seguinte cada um toma seu caminho, reatando a vida habitual”.
 
“A Lua (‘taru’) entre todos os astros, parece ser o que os Botocudos mais veneram, pois é a ela que atribuem a maioria dos fenômenos naturais”.
 
PRÓXIMA EDIÇÃO: Parte 5 – Na edição 271, de outubro,  
Maximilian parte de Belmonte em direção à vila de Ilhéus
e leva em sua companhia o índio botocudo Guack.