NATURALISTAS VIAJANTES

O Príncipe e o Botocudo – Parte 5

4 de outubro de 2016

Maximilian parte de Belmonte em direção à vila de Ilhéus. Leva em sua companhia o índio botocudo Guack que orienta o príncipe alemão sobre todas as anotações.

 

 

O Príncipe-naturalista Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied e o índio botocudo Joachim Quäck
 
 
 
EM DIREÇÃO A ILHEUS
 
Parte de Belmonte em direção à vila de Ilhéus. Leva em sua companhia o índio botocudo Guack. A partir de Belmonte, as anotações de Maximiliano sobre os índios são sempre confrontadas com a opinião de Guack. 
 
Quäck ou Quêck e até Kuek (1800-1833), são os nomes pelos quais o índio botocudo Guack, nascido de pais desconhecidos no sertão baiano lá pelo início dos anos 1800, atendia seu protetor, um professor de latim. O acaso o colocou no caminho do príncipe em sua passagem por Belmonte. O professor se negou a vendê-lo para Maximiliano, mas o persuasivo viajante comprou um cavalo e uma espingarda do mestre-escola e presenteou-o com um esplêndido binóculo. De acordo com o pesquisador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que no livro ‘O Príncipe Maximiliano no Brasil’ atribuiu ao príncipe a mais completa documentação sobre os botocudos da época, diante destas amabilidades o passe de Guack foi liberado e o jovem botocudo, “afeiçoou-se de tal forma a Wied que este o levou para a Europa. Foi o jovem Quêck tema de estudos variados na Alemanha e que chegou a falar fluentemente o idioma de seu amo.” 
 
 
 
 
 
O indio botucudo Guack passa a acompanhar seu novo patrão, “(…) caçando de flecha e sendo de uma fidelidade a toda prova. (…) Era ágil, robusto, animado e grande caçador. Preferia sempre a espingarda ao arco. Nas caçadas, seguia sempre a comitiva fidalga, atirando aos coelhos e raposas. Só mandado é que tomava o velho arco e fazia tiros com flechas”. Câmara Cascudo atribuía ao príncipe a mais completa documentação sobre os botocudos da época, a partir de observação inteligente e qualificada. A história de vida de Guack foi alterada pelo seu encontro com o príncipe. Para melhor? Apenas alterada.
Na foz do rio Pardo, o Imbuca do tempo dos índios e limite das comarcas de Porto Seguro e Ilhéus, demora pouco tempo na vila de Canavieiras.
 
 
 
COMANDATUBA, UNA E OLIVENÇA
 
Depois do rio Comandatuba, já nas praias que recebem o rio Una, “começa a aparecer o tipo de embarcação denominado jangada. (…) As maiores embarcações desse tipo têm comumente um pequeno mastro, com vela, e podem levar às vezes muitas pessoas. (…) Mais ao sul, desaparecem as jangadas e só se vêem canoas; mais ao norte, pelo contrário, estas rareiam e aquelas é que se tornam comuns”. Imagina que a existência da árvore adequada para a sua feitura provoque seu aparecimento.
 
Nota que em Vila Nova de Olivença “com exceção do padre, do escrivão e de dois negociantes portugueses, todos os demais habitantes são índios, que conservaram seus traços característicos em toda a sua pureza. (…) Um dos principais ramos de indústria dos habitantes de Olivença é a fabricação de rosários com os frutos da palmeira ‘piaçaba’. (…) Fui ver os índios em suas palhoças e encontrei a maioria deles trabalhando na confecção de rosários”.
 
Encanta-se com a beleza da vila de Ilhéus, ou São Jorge. “Diante da embocadura do rio, vêem-se duas pequenas ilhotas rochosas, de que o lugar tirou o seu nome”.
 
Deslumbra-se com a beleza do rio Taípe, em forma de lago, que remete o príncipe ao mito da existência do Eldorado. Acompanhado por um fazendeiro holandês, o Sr. Weyl, que comprara na região um aldeamento recém abandonado pelos índios Camacãs, o príncipe divaga: “O espetáculo dessa natureza grande, majestosa e selvagem, compensará o Sr. Weyl da corajosa resolução de deixar a sua pátria para vir viver unicamente com a sua família nessas remotas paragens. Em qualquer parte do mundo o homem culto encontrará entretenimento e ocupação; mas entre todas as classes, é ao naturalista que cabe a maior vantagem sobre os outros; que campo imenso de observações, que fonte inesgotável de prazer espiritual não lhe proporcionaria essa morada solitária nas nascentes do Taípe!”.
 
O entusiasmo dos brasileiros a seu serviço pela aguardente apressa o príncipe a deixar a vila de Ilhéus. 
Em São Pedro de Alcântara, “último povoado que encontra quem sobe o rio de Ilhéus”, chega em um dia santo: “Um dos meus homens, morador em São Pedro, ouviu por isso vivas censuras da parte da mulher; a discussão quase terminou em vias de fato”.
 
Em janeiro de 1817, parte para uma excursão pelo sertão, guiado pelo mineiro José Caetano, que “sabia tocar os animais, arreá-los e tratar deles; conhecia a estrada, por tê-la percorrido uma vez, trazendo uma boiada do sertão. (…) Quem se decida a empreender viagem semelhante, deve gozar de excelente saúde, ser capaz de suportar fadigas de todo gênero, animado de ardente zelo pelos objetivos em mira, suportando tranqüila e alegremente todo e qualquer desconforto, acomodando-se às privações, e sabendo tomar no bom sentido todas as contrariedades que experimente”.
 
Ao pernoitar às margens de um córrego onde um índio fora enterrado, depara-se com a crença que ainda persiste: “O comum dos brasileiros não passa de bom grado a noite no lugar em que alguém foi enterrado, pois o medo das almas-do-outro-mundo é ainda muito forte entre eles. Se isso porém acontece, não deixam de murmurar algumas orações em seu rosário; mas quando estão junto de outras pessoas, têm mais coragem, pois acreditam que os espíritos fogem para longe”.
 
Homens e animais sofrem com a falta de alimento. Na travessia do rio Catolé, afluente do rio Pardo, uma pinguela improvisada com troncos o assusta: “Tomaram então a resolução de levar na cabeça para a outra margem a nossa bagagem, que consistia em várias caixas muito pesadas, passando com maior destreza sobre a ponte oscilante e perigosa, onde nós europeus, embora não carregados, tínhamos dificuldade tanto maior em nos defender da vertigem quanto os troncos, molhados pela água, estavam escorregadios e balançavam a todo instante sob nossos pés”.
 
Depois de uma travessia de 22 dias pela mata, o canto de um galo anuncia a chegada a lugar habitado, de nome Berruga. Dois dias depois, entra em Barra de Vareda, “onde fomos recebidos com a maior cordialidade, e depressa nos refizemos por completo das fadigas de nossa viagem pelas matas". 
 
“Vi aqui pela primeira vez, como se cria gado no sertão: são os ‘vaqueiros’ ou ‘campistas’ como os chamam em Minas Gerais, vestidos de couro de veado da cabeça aos pés. 
 
 
 
O GADO, MOCÓS E JABIRUS
 
Depara-se com o mocó, uma espécie de capivara em miniatura. É pioneiro na descrição do roedor: “Encontrei entre os mamíferos uma espécie de Cavia ainda não descrita, o ‘mocó’, pequeno animal do tamanho de um coelho, que vive sob os amontoados de pedra do rio Pardo, no alto Belmonte, no rio São Francisco e em outros lugares semelhantes”.
O jaburu faz ainda parte da paisagem daquelas paragens: “De uma lagoa, por entre o gado que pastava, levantou vôo o grande jabiru (Jabiru mycteria); a esta grande e bela ave, a mais rara entre as grandes pernaltas da região, chamam aqui ‘tuiuiú’”.
 
Generaliza as maneiras de se lidar com o gado: “O modo de tratar do gado selvagem no sertão da Bahia é, sob outros aspectos, bem mais atrasado do que em Minas Gerais, onde o gado é manso, e as fazendas são fechadas por cercas e valos, pelo que, para pegar as vacas, apenas se faz necessário o uso do laço, atirado nos chifres. (…) No Brasil não se sabe fabricar manteiga: aliás, o calor impediria que essa se conservasse e o alto preço do sal muito a encareceria. (…) Os vaqueiros, ou antes, os ‘campistas’ de Minas, têm a sua tarefa bem mais facilitada do que os do sertão, e não usam as vestes de couro indispensáveis a estes”.
 
Numa fazenda na aldeia de Tamburil, é apresentado ao oratório: “Fomos aí observados com muita curiosidade, pois asseguram-nos que nunca até então se havia visto ingleses; porém nada nos faltou e fomos alojados, em companhia de uns viajantes brasileiros, numa grande sala, onde armamos as nossas redes. Ao cair da noite, todos os convivas se reuniram para entoar ladainhas, segundo o costume da terra; nessas moradas solitárias, ou fazendas, costuma haver uma sala com um cofre ou um armário, contendo algumas imagens de santos; os moradores se ajoelham diante dessas imagens para fazer orações”.
 
Uma chuva de granizo aguça a curiosidade dos seus acompanhantes: “À noite, sobreveio violenta tempestade; caíram torrentes de chuva acompanhadas de espessa saraiva; os meus homens, que nunca haviam visto semelhante meteoro ao longo do litoral, apanharam por curiosidade os grãos transparentes de gelo, testemunhando em altas vozes a sua surpresa”. 
 
Consegue exemplares da ema (Rhea americana) e da seriema (Cariama cristata) e se frustra por não “encontrar a única árvore do Brasil que se assemelha ao pinheiro europeu, a Araucária, que se encontra em Minas Gerais e em outras partes altas do interior do país”.
 
Chega até o Quartel Geral do Valo, “nos limites da capitania de Minas Gerais”.
 
Regressa a Vareda seguindo o ribeirão da Ressaca. Permanece na região para compreender a criação de gado ali desenvolvida. Na Europa, por causa dos invernos severos, o gado é criado confinado. Com as grandes extensões à nossa disposição e a técnica trazida pelos negros africanos da criação livre nos pastos, é compreensível sua curiosidade. “Aos ‘vaqueiros’, com propriedade poderíamos chamar homens encourados, pois se vestem de couro da cabeça aos pés. O seu chapéu redondo de couro serve-lhe, em caso de necessidade, de prato e copo de beber; sua roupa, que às vezes não tiram por longo tempo, protege-lhes o corpo contra os arbustos espinhoso, que enchem os ermos em que são obrigados a passar grande parte da sua monótona existência. (…) Comer e dormir são as suas únicas distrações. (…) Espetáculo interessante é o dessas imensas pastagens, cheias de bois e cavalos, entre os quais passeiam tranquilamente aves grandes de diferentes espécies”.
 

 

Uma tropa em marcha, como eram as expedições naquela época.
 
 
ARRAIAL DA CONQUISTA
 
Na localidade de Porcos, “todo mundo se juntou para nos olhar com ar estupefato, e foram mesmo chamar a gente das vizinhanças para vir examinar a grande curiosidade que acabava de chegar às suas moradas. Esses homens apalparam nossos cabelos, perguntaram-nos se sabíamos ler, escrever e rezar; se éramos cristãos e que língua falávamos, não nos deixando sossegar senão quando lhes demos provas de nossa habilidade em assuntos diversos. A presteza com que escrevíamos, os nossos livros com gravuras, as cores e os desenhos, bem como as nossas espingardas de dois canos, que lhes mostramos, todos esses objetos causaram-lhes grande espanto; acabaram por declarar que a nossa situação era bem superior à deles, porque estávamos em condições de poder conhecer o mundo; em seguida unanimemente observaram que havia no mundo homens singulares, que não temiam se expor às fadigas e perigos de tão longas viagens, para buscar, nos países longínquos, pequeninos insetos, que se maldizem no lugar, e pequenas plantas, que só são procuradas pelas vacas”.
 
Logo chega ao “Arraial da Conquista, principal localidade do distrito, quase tão importante como qualquer vila do litoral. (…) As boiadas que vêm do Rio São Francisco passam também por essa localidade, e algumas vezes vêem-se chegar, numa semana, para mais de mil bois, que se destinam à capital. (…) Fomos muitas vezes incomodados por pessoas embriagadas e algumas vezes foi a grande custo que nos desembaraçamos dessa gente, que singularmente nos aborrecia. Trazendo cada um, como é perigoso costume da terra, um estilete ou um punhal na cintura, esses homens grosseiros e imorais, que nenhuma espécie de vigilância contém, cometem frequentes assassínios e outras violências”.
 
Visita a aldeia dos índios Camacãs, “os Mongoiós, como são eles denominados pelos portugueses”, e descreve suas características, suas armas, suas danças, suas habitações e seus ritos. Repara que os índios realizam trocas constantes com os estrangeiros e “costumam vender aos europeus velas de cera, que espalham um cheiro agradável, quando queimam. Fabricam-nas muito engenhosamente fazendo com elas compridos cordões, que em seguida enrolam artisticamente em feixes alongados, a que externamente grudam grandes folhas. (…) Encontrei em suas choças pés de anta em completa putrefação, e quê comiam, assim mesmo, como coisa muito apetitosa; em compensação, não tocariam na carne do tatu verdadeiro, que os europeus muito apreciam”.
 
Quando um camacã cai doente, deixam-no sozinho; se ainda pode andar, procura por si a sua subsistência, pois, do contrário, se verá absolutamente privado de qualquer ajuda. Essa indiferença pelos doentes e desvalidos se observa entre os indígenas do Orenoco, onde o desprezo de que são vítimas só tem rival no estoicismo com que sofrem as suas dores, e até esperam a morte, tal mo se lê na relação de vários viajantes”.
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO: Parte 6 – Na edição 272, de novembro,
 O príncipe Maximilian chega a Salvador e prepara sua viagem de volta à Europa no navio Princesa Carlota, no dia 10 de maio de 1817, levando o índio botocudo Quack para a Alemanha.