NATURALISTAS VIAJANTES

O Príncipe e o Botocudo

1 de novembro de 2016

Depois de ficar retido em Nazaré das Farinhas, chega a Salvador e prepara sua viagem de volta à Europa no navio Princesa Carlota, no dia 10 de maio de 1817.

 
 
Inicia sua viagem de volta, e “em breve achei-me no pequeno arraial de Poções, cujo vigário pareceu-me grande apreciador de bebidas fortes, pelo menos a julgar pelo seu estado de completa embriaguez”.
 
Sobre o rio de Contas, anota: “Esse rio, que teve a princípio o nome de Jussiape, nasce na comarca de Jacobina e recebe vários afluentes. (…) Passamo-lo a vau, sem custo, em nossos cavalos”.
 
Na viagem de volta a Salvador, às margens do córrego Jequiriçá, no caminho para Laje, Maximiliano é tomado por um dos agitadores estrangeiros que participam da Confederação do Equador. Seu grupo de seis pessoas é rendido por um bando de umas setenta pessoas, “brancos, mulatos e negros, que mais pareciam bandidos”. Até os portugueses que acompanhavam o príncipe ficaram desconfiados e nem as portarias e cartas de recomendação lhe valeram de ajuda. “Em cada fazenda que passávamos, corriam os moradores em chusma para nos ver, apontando com os dedos os criminosos e repetindo constantemente os nomes de ‘ingleses’ e ‘pernambucanos’”
 
 
NAZARÉ DAS FARINHAS
 
Fica retido em Nazaré das Farinhas por uma semana à espera de ordens vindas de Salvador. Descreve a vila e algumas das árvores e plantas que identifica. Liberado, desce de barco o rio Jaguaribe, em cujas margens muitos oleiros e fabricantes de telhas utilizam a lenha dos mangues para queimar e dar cor vermelha à argila, que é cinzenta. Anota que os pescadores se opuseram a essa prática por prejudicar a pesca e afugentar os caranguejos. Passa pela vila de Jaguaripe e, na foz do rio, avista a grande ilha de Itaparica. Descreve a vila de Itaparica e, depois de uma travessia “penosa e fatigante”, chega à cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, onde o Conde de Arcos muito se desculpa pelo incidente da prisão equivocada. Observa que “de cada lado da rua, vêem-se os fogareiros que as negras conservam sempre acesos, para cozinhar e assar as gulodices, pouco apetitosas, aliás, que vendem aos compatrícios”. 
 
Parte para Lisboa no navio Princesa Carlota, no dia 10 de maio de 1817. Dedica um capítulo à viagem de volta à Europa. A transcrição de alguns trechos nos dá uma pálida idéia de uma travessia oceânica naqueles dias: “Tendo feito as minhas despedidas às pessoas de minhas relações, embarquei na tarde do dia 10 de maio, e já ao anoitecer o capitão Bethencourt mandou suspender âncora. Um vento favorável nos impeliu para fora da baía de Todos os Santos e, tendo-se aberto todas as velas, não tardamos a perder a cidade de vista”. 
 
“A 20 de maio havíamos passado Fernando de Noronha. O vento tornou-se de novo favorável, o tempo calmo, e um belo luar se veio somar aos prazeres da travessia. Sentados no convés, sob a aragem fresca da noite, contemplávamos muita vez a magnífica claridade nos altos mastros e nas brancas velas do navio, meditando sobre essa audaciosa invenção, com a qual o gênio humano vence e domina todas as partes do mundo. A garbosa nave singrava tranquilamente como um pássaro e sem o menor ruído, impelida pelo vento, a proa da embarcação muito carregada ergue-se sobre as ondas, para afundar-se nelas novamente; com a sua pesada massa cortava as vagas rolantes, fazendo-as rebentar em alva espuma. Assim, já havia quatro meses que o Carlota viajava de Calcutá para a Bahia, arrostando sem o menor dano os ventos e as tempestades, enquanto no cabo de Boa Esperança navios de guerra soçobravam ao seu lado”.
 
“A 21 (de junho) o tempo estava encoberto e ameaçador. (…) Lá para o meio-dia o vento, que até então soprara do norte com a maior impetuosidade, virou bruscamente para noroeste, ameaçando partir os nossos mastros e pondo-nos em terrível confusão. Todos acorreram ao tombadilho, e cada um pôs mãos à obra para arriar as velas, operação difícil por causa da chuva violenta que acompanhava a tempestade. O capelão de bordo, que era um ‘marate’ de Goa, o cirurgião e os passageiros expuseram suas vidas nessa ocasião. Após muitos esforços, conseguimos escapar do perigo”.
 
“(…) na manhã do dia 28 notamos no horizonte um navio que parecia seguir a mesma rota que o nosso. O piloto do Carlota, que já havia sido prisioneiro dos corsários, e bem assim o capitão e toda marinhagem, observaram com a maior atenção esse navio, pois todos eles julgavam distinguir em suas manobras sinais ameaçadores para nós. Às 12 horas, com sobressalto de todos, reconheceu-se ser uma escuna americana, tornando-se, portanto muitíssimo provável que iríamos nos haver com um corsário. No mesmo instante deu ele um tiro de canhão, para indicar que o devíamos esperar, e içou o pavilhão português. A confusão chegou ao auge; cada qual desceu ao seu camarote para esconder o que possuía. Abriram-se buracos no revestimento interno do navio para meter aí tudo o que havia de mais precioso, como papéis, dinheiro, etc., se bem que não devesse esperar esconder nada aos olhos ávidos de piratas excitados pela presa. Puseram na mesa o almoço; mas ninguém teve muito tempo, porque ao grito de ‘a escuna vem perto! ’, todos se reuniram sobre o tombadilho. Nossos olhos se fixavam inquietos e no maior silêncio sobre a embarcação que vinha sobre nós a todo pano. Trazia os canhões a descoberto; uma multidão de homens comprimia-se sobre o tombadilho distinguindo-se no meio dela negros e mulatos, o que ainda aumentava as nossas suspeitas. No momento em que esperávamos, com ansiedade difícil de descrever, a decisão da nossa sorte, o comandante da escuna tomou o porta-voz e nos perguntou de onde vínhamos. Respondemos, bem inquietos sobre o que é que nos iam eles replicar, quando, – com inesperada satisfação! – alguns dos nossos marinheiros postados no cesto da gávea, reconheceram que o pretenso corsário era um navio de guerra português. (…) O Constância era com efeito uma bela escuna americana de dezoito canhões, que o governo português comprara e armara”.
 
“Ao meio-dia (1º de julho), aproximadamente, o Carlota ancorou na margem setentrional do Tejo, em frente de Belém, que constitui o começo da cidade de Lisboa. (…) Dois navios de linha, que se achavam ancorados perto da cidade, e que daí a poucos dias deveriam ir buscar em Livorno a arquiduquesa Leopoldina da Áustria, para conduzi-la ao Rio de Janeiro, enviaram a bordo do nosso navio um oficial acompanhado de soldados, para escolher alguns marinheiros dos nossos, pois que faltavam homens em sua tripulação”.
 
 
Quatro retratos de índios botocudos
 
 
 
VOLTA PARA A ALEMANHA 2 ANOS E 29 DIAS DEPOIS
 
“Como, por exemplo, se pode supor que todas as partes de um país tão grande como Brasil se pareçam umas com as outras, quando cada província apresenta uma particularidade distinta?”
 
 
Chega aliviado à Inglaterra, escala de sua viagem para o conforto de seu palácio às margens do Reno: “Que alegria experimentei, após um intervalo de dois anos e vinte e nove dias, por me encontrar de novo no mesmo ponto donde partira”.
 
BRASIL, SÓ VENDO PARA ENTENDER
 
O príncipe deixa um alerta em seu livro Viagem ao Brasil”, ainda mantido em catálogo pela Editora Itatiaia de Belo Horizonte: “Faz-se geralmente na Europa ideia bastante inexata desses longínquos países. Pode-se atribuir esse erro a certos viajantes, que não se limitaram a tratar somente do que viram, e a escritores que fizeram descrições de regiões em que nunca puseram os pés. Essas descrições, escritas nos gabinetes sobre tema escolhido, com a citação do que parece mais interessante nos autores conhecidos, ao sabor da fantasia e sem conhecimentos dos fatos, podem agradar pelo primor do estilo e a forma atraente com que são apresentadas, mas não possuem nenhum valor real, repletas que são de erros. Como evitar os erros e as inexatidões, quando não se tem presente, aos olhos, o objeto de que se deseja traçar a imagem? Como, por exemplo, se pode supor que todas as partes de um país tão grande como Brasil se pareçam umas com as outras, quando cada província apresenta uma particularidade distinta? Assim é que se lê em mais de um livro que em todo o Brasil se encontram fatos arborescentes; exagera-se em geral a beleza do país; fala-se de macacos que riem e tagarelam; de pássaros canoros que chilreiam; de laranjeiras que crescem nas florestas; de toda a sorte de propriedades absurdas atribuídas às serpentes; fazem-se descrições exageradas das florestas. O fato é que raramente se encontram reunidas todas as coisas agradáveis e interessantes, como imagina o leitor sentado em sua poltrona, depois de haver tirado suas descrições aos viajantes acostumados a representar tudo com exagerada beleza”.
 
 
A tropa que levava mantimentos e dava apoio material para deslocamento e segurança à viagem do príncipe Maximilian
 
 
 
SUGESTÕES
 
No apêndice, deixa sugestões “sobre a maneira de se empreenderem no Brasil viagens relativas à história natural” e transcreve um “Vocabulário dos povos indígenas do Brasil mencionados neste relatório de viagem”. 
 
Sobre a língua dos botocudos, atesta: “É geralmente difícil fazer os selvagens repetirem várias vezes os nomes dos objetos, o que, no entanto, é absolutamente necessário para se representar com exatidão os sons bárbaros. Pensam que se pretende caçoar deles e, então, não há meio de induzi-los a fazer o que se deseja, ainda que se lhes acene com as mais tentadoras promessas. (…) Escrevi em parte este vocabulário quando me encontrava às margens do rio Grande de Belmonte; aumentei-o depois à medida que o jovem Queck fazia progressos na língua alemã”. 
 
Solicita a um linguista alemão um estudo aprofundado sobre a língua dos botocudos. O sábio, Sr. Goetling, examina Guack e as anotações de Maximilian e assim inicia sua preleção: “A língua dos Botocudos é muito rica em onomatopéias, isto é, em palavras que imitam um som próprio de determinada coisa empregando o som ou o movimento da coisa que se quer designar”.
O crânio levado pelo príncipe é entregue ao professor Blumenbach, que o analisa e o “classifica a meio caminho entre o orangotango e o homem”.
 

 

O príncipe deixou um vasto material iconográfico da expedição. Neste desenho, o acampamento do Príncipe Wied-Newied no Rio Cachoeira.
 
 
Vinte anos depois de sua viagem, indignado com as críticas de Saint-Hillaire à terminologia e classificação de algumas espécies, Maximilian publica correções de seu próprio livro. Considera que a maioria das falhas é de responsabilidade do tradutor da obra para o francês. Exprime sua indignação: “Um dito viajante francês refere-se muitas vezes a este trabalho em tom de censura, dando margem a que o leitor possa suspeitar de que tenha havido superficialidade ou falhas de observação por parte do autor, ou que este tenha sido pouco consciencioso em seus registros. (…) O autor considera seu dever, tanto para com os possuidores da obra, como no que respeita à sua própria reputação, tornar públicas as seguintes retificações, às que se poderão depois fazer muitos reparos de natureza científica”. 
 
As notas e correções foram
publicadas em alemão, francês e português.
 
A historiadora paulista Christina Rostworowski da Costa, em sua tese de mestrado na USP, disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-15042009-150645/pt-br.php, investiga e aprofunda a importância da viagem do príncipe  Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied pelo Brasil. 
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO: Parte 7 (última) –
Na edição 273, de dezembro, o príncipe Maximilian
volta para a Alemanha e um de seus secretários permanece no Brasil para organizar o transporte dos animais e plantas coletados. O botocudo Guack – corruptela de Nuguäck, seu nome original, acompanha o príncipe. Chegam a Neuwied em 12 de fevereiro de 1818.
Guack é batizado com o nome de Joachim Kuêk.