Naturalistas Viajantes

O PRÍNCIPE E O BOTOCUDO (Parte 7 – última)

2 de dezembro de 2016

Índio botucudo acompanha o príncipe e vira sensação exótica na Europa

Esta é a última parte de uma das mais importantes expedições dos “Naturalistas Viajantes”. Há 200 anos, o Príncipe alemão Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, com identidade secreta, viajou a cavalo numa expedição científica percorrendo a costa brasileira do Rio de Janeiro a Salvador. Em sete capítulos (este é o ultimo), Miguel Flori Gorgulho contou como Maximilian saiu do Rio de Janeiro e chegou a Salvador. Depois de dois meses e 29 dias no Brasil, o príncipe se preparou para a viagem de volta à Europa. Além de se encontrar com diversas tribos indígenas, descrever paisagens e comportamento de índios e populações ribeirinhas, Maximilian voltou para a Alemanha com um jovem índio botocudo. Mas deixou um de seus secretários no Brasil para organizar o transporte dos animais e plantas coletados durante a expedição. 

 
Ao retornar para a Europa, é acompanhado pelo botocudo Guack (ou Kuêk, ou Quäck, segundo a notação tradicional alemã), corruptela de Nuguäck, seu nome original. Chegam a Neuwied em 12 de fevereiro de 1818, depois de escala em Amsterdã. Guack é batizado com o nome de Joachim Kuêk e passa a acompanhar Maximilian. 
 
Segundo o professor alemão de anatomia e biologia celular Karl Schilling, Maximilian registra em carta que se encontrou com Quäck em 1816, na casa de um professor de Latim chamado Moreira de Pinha, em Porto Seguro. Descreve Quäck como um garoto “de 11, no máximo 12 anos de idade”, que foi dado a Moreira pelo “Ouvidor Marcelino da Cunha, que havia enviado entre 20 e 30 indígenas para o Rio, por curiosidade, e a quem, tendo feito promessas a eles, eventualmente os deixava na miséria, sem cumprir as suas promessas, e então dava alguns deles (como presentes) para os seus amigos e subalternos…”.
 
 
 
 
O príncipe Maximilian encontrou o índio Quack em 1816, em Porto Seguro, quando deveria ter uns 12 anos de idade. Na Alemanha foi motivo de estudos e era uma sensação exótica.
 
 
Pelas observações do professor, Maximilian o mantém material e financeiramente, sem esperar nenhum tipo de serviço específico. À medida que domina a língua de seu protetor, Quäck é de inestimável auxílio por seu conhecimento sobre a flora e a fauna, sobre os povos indígenas e suas maneiras de viver. O príncipe Maximilian se refere a Quäck mais como um parceiro que como um objeto, em suas pesquisas científicas. Eventualmente, Guack foi observado cuidadosamente por etnógrafos e professores que o visitaram em Neuwied. Era uma sensação exótica para o público suas apresentações com o arco e a flecha. Seu artesanato indígena o fez muito popular entre as crianças. 
 
 
PROBLEMA COM ALCOOLISMO
 
O choque térmico entre o sertão da Bahia e a vida no palácio no frio norte europeu deprime Quäck e o leva a encontrar lenitivo no alcoolismo. Maximiliano observara em seu relato que o “amor por uma vida livre, natural e indômita é impressa na vida de todo mundo, quando mais novo. Todo silvícola levado de suas matas para o convívio junto com europeus têm suportado durante algum tempo este sacrifício, mas aspiram sempre voltar ao lugar de seu nascimento, e frequentemente para ali fogem quando não se atendem seus desejos. Quem não conhece a mágica atração de alguém por sua terra natal e suas formas tradicionais de vida. Onde está o caçador, que não sente desejo de retornar para as florestas que ele vagava em sua juventude?”. 
Demonstra forte compaixão pelos sentimentos e as saudades que observa em Quäck, depois de algum tempo em Neuwied. O príncipe e sua família tentam lutar contra a situação e as descrições de suas ações são, às vezes, penosas. À época, o alcoolismo não era considerado verdadeiramente uma doença e, as tentativas dos anfitriões de controlar o vício de Quäck são consideradas sensíveis, modernas e humanas. 
 
 
O CRÂNIO DE QUACK NO MUSEU
 
 
 
Este é o crânio de um índio botocudo que o Príncipe Maximilian também levou para a Alemanha.
 
 
 
 
Em 1832, o príncipe parte para nova expedição, desta vez para a América do Norte, em companhia do genial pintor suíço Karl Bodmer, para investigar possíveis afinidades entre os nativos norte-americanos e os que encontrara em sua expedição à América do Sul. Quäck permanece em Neuwied, sem os cuidados e a afeição de seu protetor. Solitário e deprimido, sua situação se agrava e, no dia 1º de julho de 1834, o jornal de Neuwied anuncia: “Morreu Joachim Kuêk, de aproximadamente 34 anos, originário da nação dos botocudos, no Brasil, criado de Sua Alteza o Príncipe Max de Wied”.  
 
O obituário da igreja católica de Neuwied anuncia que Kuêk faleceu às 9 horas do dia 1º de julho, de uma inflamação do fígado e que foi enterrado como católico em Neuwied, no chamado ‘Cemitério Velho, comum aos católicos e protestantes’. Bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial destruíram o local.
O professor Schilling se refere ainda a “uma carta, escrita por Maximilian zu Wied e parcialmente citada em uma publicação científica no início de 1862, em que declara que o crânio de Quäck está realmente no Museu do Instituto de Anatomia em Bonn, e que ele tinha sido levado para o museu pelo médico da corte Dr. Hofrath Dr. Bernstein”. 
 
O crânio permaneceu em exibição no Instituto até o início de 2011. No dia 15 de maio de 2011, o Cônsul-Geral da Alemanha, numa cerimônia solene na cidade de Jequitinhonha, situada no nordeste de Minas e próxima da divisa com a Bahia, em presença de representantes de seis tribos indígenas que habitavam a região, o crânio foi devolvido à tribo Krenak, oriunda do mesmo tronco borun de Kuêk. 
 
O professor Schilling, atual diretor do Museu de Anatomia de Bonn e responsável direto pela liberação do crânio, se diz orgulhoso em fazer parte dessa jornada do retorno de Quäck ao sertão em que nasceu. Um negro que serviu o príncipe no Brasil e viajou também para a Europa com Quäck, morreu de problemas cardíacos em 1820. 
 
A entrevista que o professor concedeu à Revista da História pode ser lida em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/a-vida-de-quaeck
 
 
 
 
Principe Maximilian e o índio botocudo Joachim Quäck.
 
 
 
 
O DESTINO TROPICAL DE SELLOW E FREYREISS
 
Segundo a historiadora Miriam Junghans, Sellow continuou a viajar pela Bahia e se estabeleceu por um tempo em Nazaré das Farinhas, até ser requisitado no Rio pelo secretário da delegação prussiana, o naturalista Ignaz von Olfers (1793-1872). Percorre vários estados de Minas Gerais para o Sul e chega ao Uruguai. Realiza coletas botânicas, mineralógicas, zoológicas e paleontológicas. Ele não deixou nenhum diário publicado. Suas anotações de campo aguardam a luz, adormecidos há mais de um século, no Museu de História Natural de Berlim. A estação ferroviária de Frederico Sellow, perto de Belo Oriente em Minas Gerais, sinaliza as proximidades do local onde o naturalista se afogou nas águas do rio Doce em 1831, aos 40 anos de idade.
 
Em fins de 1819, Sellow cruza o caminho de Saint-Hillaire (1779-1853) nas proximidades de Sorocaba. O naturalista francês registra assim o encontro: “Encontrei também em Ipanema um jovem prussiano, Sellow, o primeiro naturalista a chegar ao Brasil depois de firmada a paz. (Término das guerras napoleônicas) Tinha feito anteriormente um estágio no Jardim Botânico de Paris, a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos, e vivia agora de uma pensão que lhe dava o ilustre e generoso Humboldt, o qual fazia crer ao rapaz que ele estava sendo pago pela administração do Jardim. Sellow dedicava-se às suas pesquisas com um zelo e uma energia sem par. Tinha percorrido o litoral do Brasil, desde o Rio de Janeiro até a Bahia, em companhia do Príncipe de Neuwied; em seguida, junto com o Sr. d’Olfers, visitou a Província de Minas e dali dirigiu-se, finalmente, a São Paulo. A botânica era a parte da história natural que mais lhe despertava entusiasmo, e ele me pareceu possuir conhecimentos bastante vastos sobre a matéria, não tendo deixado de estudar também a relação que há entre as plantas. Sabia manter uma conversa inteligente sobre outros assuntos, conhecia várias línguas e mostrava possuir senso crítico e vivacidade de espírito. De temperamento frio, e até ríspido, ele parecia dotado de excessivo amor-próprio. Enchi-o de ansiedade ao enumerar para ele as pessoas que, enquanto estávamos ali no Brasil, publicavam na Europa trabalhos sobre as coisas que havia no país, e usando de toda a polidez e de um mínimo de formalidade, forcei-o a assumir em relação a mim maneiras mais simples e cordiais, das quais, entretanto, ele se descartava quando se achava na presença de Varnhagen  [Friedrich Varnhagen (1783 – 1842) engenheiro alemão responsável pela Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema e pai do historiador Francisco Adolfo Varnhagen] e Natterer [Johann Natterer (1787-1843), zoólogo austríaco que veio na comitiva de naturalistas que acompanhou a Princesa Leopoldina e ficou 18 anos no Brasil]. De volta de minha viagem ao Sul, enviei-lhe várias cartas de recomendação para os meus amigos do rio Grande e de Montevidéu, os quais lhe deram boa acolhida. Ele me escreveu, no dia 24 de abril de 1824, para me agradecer, comunicando-me que havia tentado inutilmente obter um passaporte para ir ao Mato Grosso e tivera de se contentar em percorrer a Província do Rio Grande do Sul e a Banda Oriental. Disse-me ainda que se preparava para retornar a São Paulo, passando pelo sertão de Lajes. Terminou a carta dizendo que espera voltar a ver-me um dia. Ele morreu afogado no Rio Doce, no ano de 1831. Em seus Anais da Província do Rio Grande do Sul, 2ª Ed., M. J. F. Fernandes Pinheiro faz grandes elogios a esse homem notável. Diz ele que Sellow lhe fornecera dados preciosos, que lhe haviam sido de grande valia. Sellow tinha estabelecido várias posições geográficas na Província do Rio Grande, estudara os minerais da região e formara uma coleção de plantas de consideráveis proporções”.
 
PENDEGA COM LANGSDORFF
 
Freyreiss, que viera para o Brasil a convite de Langsdorff, teve seu passe de naturalista requisitado pelo Cônsul da Suécia, Lorentz Westin, que conhecera em sua passagem por Estocolmo e Upsala. Talvez o adiantamento de um ano de salário pago por Westin para as pesquisas de Freyreiss tenha motivado o naturalista, que sempre vivera em pendenga monetária, a romper seu compromisso com Langsdorff. As coleções feitas por Freyreiss foram enriquecer a Academia de Ciências da Suécia.   
 
Depois de viajar com o príncipe Maximilian, o Ministro de Estado Antônio de Araújo e Azevedo, (1754-1817), o Conde de Barca, nomeia Freyreiss como naturalista real e o incumbe de atividades acadêmicas como professor de zoologia no Rio de Janeiro. 
 
Freyreiss solicita e consegue permissão para estabelecer uma colônia alemã na Bahia. Em 1824 publica um relato da vida na região, ‘Beitrage zur näheren Kenntniss des Kaiserthums Brasilien’ (Contribuições para o conhecimento imediato do Império Brasil), nunca traduzido para o português. Morre febril nessa colônia, Nova Leopoldina, atual Helvécia, pertencente ao município de Nova Viçosa, no sul da Bahia, em 1825, aos 36 anos.
 
A tropa que levou o Príncipe alemão pelo litoral brasileiro entre Rio de Janeiro e Salvador.