Uirapuru
Uirapuru – Joia do Tumucumaque
1 de fevereiro de 2017Johan Dalgas Frisch: “Como consegui gravar o canto do uirapuru”.
“Tive coragem de sonhar e
de encarar todos os meus sonhos.
Agradeço aos Céus por não
ter sonhado em vão.”
Dalgas Frisch
Ao ler “Uirapuru – Joia do Tumucumaque”, o leitor vai se encantar com muitas histórias e muitos causos de Johan Dalgas Frisch, que é presidente da APVS – Associação de Preservação da Vida Selvagem. Aos 86 anos, atuante e muito contundente na defesa das aves e das águas, Dalgas não cansa de aconselhar as famílias brasileiras, sobre a importância de conscientizar e despertar nas crianças de hoje o sentido de proteção da natureza, sobretudo das aves. E também de homenagear os vários parceiros que o ajudaram no caminho da preservação da vida selvagem.
Johan Dalgas Frisch: “Temos que lembrar Victor Hugo quando disse: – É triste pensar que a natureza fala, mas os homens não querem ouvi-la!”
REVELAÇÃO DE UM SONHO
Era novembro de 1962. Passando por Manaus, fui informado que o rei Leopoldo III, da Bélgica, estava na região com uma equipe, realizando uma expedição por nossos rios e florestas.
O rei e sua comitiva estavam hospedados no Hotel Amazonas. Fui para lá com a certeza de que Sua Majestade ficaria satisfeita em ouvir o canto do “pássaro-boi”.
Qual não foi minha surpresa ao receber, naquela noite, um lisonjeiro convite:
– O rei Leopoldo III queria jantar em minha companhia. O monarca estava curioso para saber mais sobre aquela surpreendente espécie que havia cruzado meu caminho.
Meu gravador foi colocado sobre a mesa onde fizemos a refeição. Tivemos uma conversa muito agradável.
A certa altura, confidenciei-lhe um segredo:
– Majestade, na Serra do Tumucumaque, no Pará, assim que terminei de gravar o canto do “pássaro-boi”, avistei o fascinante beija-flor “brilho-de-fogo”. Foi um momento mágico. Tive uma espécie de sonho acordado. Sonhei que deveria criar ali, com urgência, um Parque Nacional para preservar toda aquela beleza inacreditável da natureza amazônica, para as atuais e futuras gerações. Não sei como, mas este sonho precisa virar realidade.
Senti o interesse do rei Leopoldo III e percebi o quanto minha mensagem tocou-lhe o coração!
Antes da despedida, o rei Leopoldo III insistiu para que eu integrasse sua expedição. Pedi desculpas por não poder acompanhá-lo já que dispunha de pouco tempo para encontrar o uirapuru.
Nossos destinos foram então separados. Segui em direção oposta ao roteiro real.
Dalgas Frisch recebe do governador Tião Viana a maior comenda do Estado, a Ordem da Estrela do Acre, em agosto de 2016.
O GRANDE ENCONTRO
Então subi o rio Negro até a divisa do Brasil com a Colômbia e Venezuela. Ali avistei e gravei, em Uaupés, no alto do rio Negro, os cantos do rouxinol-dorio-negro (Icterus (cayanensis) chrysocephalus) e do sabiá-poliglota (Turdus laurensis), que imita com perfeição o canto de cerca de 20 diferentes aves típicas da floresta amazônica, entre as quais os gaviões.
Não encontrando, mais uma vez, qualquer sinal do uirapuru, me vi obrigado a retornar à Manaus para pegar um avião para o Acre.
Quando chegamos à capital, Rio Branco, fui recebido pelo próprio governador do estado, Aníbal Miranda. Ele tinha ouvido, pelo rádio, a notícia de que eu estava à procura do uirapuru.
O governador Miranda acabou por me dar valiosas indicações sobre onde supunha ser mais fácil encontrar o lendário pássaro.
EM DIREÇÃO AO ACRE
Parti, então, rumo ao seringal Bagaço, situado na divisa do Acre com o estado do Amazonas. Ao anoitecer, finalmente, cheguei ao local sugerido. Pouco depois, caiu um temporal.
Na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol, parecia que toda floresta amazônica estava em festa.
Sons de pássaros de diversas espécies vinham de todos os lados. Acompanhado de um guia índio, fui penetrando na mata fechada. Silêncio na mata. De repente, o guia chama minha atenção.
– Escute! É o uirapuru.
Eu não tinha percebido nada! Passaram uns 10 minutos e o guia me faz sinal de novo. Entramos um pouco mais na floresta.
A essa altura, meu gravador e a parabólica já estavam operando. Então, um pequeno pássaro, menor que um tico-tico, pousou na aparelhagem. Tentei espantar. Levei uma bronca do índio-guia:
– É o uirapuru!
Após alguns instantes de tensão, a avezinha voou para o galho de uma árvore, a metro e meio de nós.
Ainda boquiabertos, pudemos ouvir o uirapuru fazer sua primeira apresentação. Exclusiva e sem pressa.
Assim que o uirapuru parou de cantar, voltei a fita e reproduzi o canto. Qualidade perfeita.
A avezinha ficou um pouco nervosa com o som de sua própria voz. Suas penas arrepiaram-se e passou a cantar uma melodia totalmente diferente da primeira. Repeti as gravações várias vezes. Ao final, consegui gravar sete cantos diferentes.
No dia seguinte, retornei ao mesmo local e consegui gravar os mesmos cantos de forma ainda mais perfeita. Concluí, então, que havia feito um registro completo e inédito dos cantos dessa espécie.
Vivi uma emoção indescritível. Uma das maiores de minha vida. Essa lembrança está registrada em mim até hoje. Eu tinha apenas 32 anos. Eram 7 horas da manhã do dia 9 de novembro de 1962.
Não tenho dúvida: o tempo pode envelhecer nosso corpo, mas nunca pode envelhecer nossas emoções.
É por isso as emoções que já vivemos continuam nos fazendo felizes. Ninguém pode copiá-las ou levá-las. Mas nós podemos revivê-las, simplesmente compartilhando-as.
O UIRAPURU – Para cumprir minha Missão Impossível, gravar o canto do uirapuru, segui pelo rio Acre em um barco cedido pelo governador Anibal Miranda.
AVENTURA NO CORAÇÃO DA AMAZÔNIA
Fico a imaginar, eu um paulistano de sangue dinamarquês, de 32 anos, embrenhado no coração da Floresta Amazônica, mais exatamente no Seringal Bagaço. Que aventura!
Estava às margens do rio Acre, a cerca de 80 quilômetros da capital Rio Branco para cumprir uma Missão Impossível. Mas, impossível mesmo é não me emocionar por ter gravado os sete cantos do uirapuru!
Dali para frente, as promessas alvissareiras associadas ao uirapuru – sorte, amor eterno e felicidade – passaram a sobrevoar minha vida. Algo mágico que vivi, vivo e viverei. Uma estrela que me acompanha nas horas mais tensas, mais difíceis e mais complicadas. Por mais que eu agradeça tantas venturas e tantas alegrias, sinceramente, ainda tenho muito mais a agradecer.
Como já disse, o autêntico uirapuru é símbolo de sorte e de amor. Pequeno, insetívoro (só gosta de insetos) tem uma plumagem de cor um pouco mais escura que a do joão-de-barro. Habitante dos seringais da parte baixa da Amazônia, o uirapuru é uma verdadeira lenda. Convém ressaltar que na região há cerca de 40 aves de outras famílias, de colorido bonito, às quais, também, a população local chama equivocadamente de uirapuru. Nenhuma delas, porém, é o autêntico Cyphorhinus modulator. Este sim, o verdadeiro uirapuru que acabamos de gravar.
A capa do livro “Uirapuru – Joia do Tumucumaque” que Dalgas Frisch acaba de lançar. O livro vem acompanhado com um relógio que cada hora é marcada com o canto das aves brasileiras.
SIGNIFICADO CIENTÍFICO E CULTURAL
Para que não reste dúvida, basta conferir o significado do nome científico da avezinha. O adjetivo Cyphorhinchus, do grego Kuphos, remete a curvo (Kutco-curvado); o substantivo rhis, rhino, equivale ao bico grosso, sulcado e encrespado da espécie. E modulator, do latim modulator, é o mesmo que músico (modulati) que canta ou toca instrumento musical.
A espécie encontrada canta somente durante a construção de seu ninho, entre os meses de outubro e novembro. Seu canto tem pequena duração, de cinco a dez minutos, e acontece na maioria das vezes ao amanhecer. Seu trinado é uma expressão delicada, de tal pureza musical, que imita as notas de uma flauta.
Macho e fêmea cantam, mas o primeiro tem maior desenvoltura.
Segundo os índios e caboclos, quando o uirapuru canta os outros pássaros fazem silêncio.
Diz a lenda que a pessoa que ouvir o canto da ave e fizer um pedido, este será realizado. Por sua vez, o homem que trouxer consigo uma pena do uirapuru será irresistível às mulheres e terá uma tremenda sorte nos negócios. Já a mulher que tiver um pedacinho de seu ninho e o colocar debaixo do travesseiro terá a paixão e a fidelidade do companheiro para o resto da vida e a garantia de conceber filhos varões.
