Naturalistas Viajantes

Freyreiss, Eschwege e Marlière – Parte 10

29 de setembro de 2017

Caminhos que se cruzam no interior do brasil. Marlière não se entusiasma com catequese religiosa para os índios

 

 

Os naturalistas viajantes foram muitos. Em reportagens anteriores, a Folha do Meio Ambiente mostrou o trabalho de vários deles. Começou em abril de 2013. Foram nada menos de 36 edições. São eles: Marianne North, Charles Darwin, Peter Lund, Eugenius Warming, Peter Brandt, Rugendas, Georg Heinrich von Langsdorff, Aimé-Adrien Taunay e Hercule Florence. Estes botânicos aventureiros se embrenharam pelas matas, rios, montanhas, tribos indígenas pesquisando flora, fauna, grutas, povo, cultura e a alma tropical brasileira. Cortaram o Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Todos eles vieram para o Brasil por uma paixão desenfreada pela mega diversidade do solo brasileiro. Todos deixaram a tranquilidade e o conforto da Europa para enfrentarem condições difíceis e terras inóspitas em busca do conhecimento. Relatórios, desenhos, pesquisas e estudos aprofundados da natureza exuberante e misteriosa de um país continental chamado Brasil estão hoje em várias universidades, bibliotecas e academias de ciências espalhados pelo mundo. Esta é a penúltima reportagem, de uma série de onze, falando de Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), Wilhelm Ludwig von Eschwege  (1777-1855) e de Guido Thomaz Marlière (França 1767 – Minas Gerais 1836).

 

TREVAS E BARBÁRIES 
 
Não se entusiasma com a catequese religiosa, política oficial do Império. Percebe que civilizar os índios, dotados de ingenuidade e bondade natural, exige menos esforço que tentar extirpar vícios acumulados em três séculos “de trevas e barbáries” de governos despóticos e corruptos manifestados nos senhores de escravos que tiranizam “o pobre africano” e acarretam a falta de “fraternidade, espírito cívico e patriótico” de colonos e de soldados. Como Diretor Geral dos Índios da Capitania de Minas Gerais, nomeia representantes internos entre os indígenas e os condecora com a patente de capitão, meio que encontra para manter o controle disciplinar. Justifica assim sua  benevolência com os índios: “Os capitães índios me mandam os criminosos, castigam as culpas leves nas suas aldeias …  São punidos com ‘palmatoadas’, como os meninos grandes que são”. É rigoroso consigo mesmo “… sempre andei na vereda da justiça e fui discípulo da razão” e com os colonos e soldados. Reprime a exploração dos índios pelos colonos, que incentivam a coleta nas matas da valorizada poaia, uma rubiácea com propriedades medicinais, a cainca de Langsdorff ou a ipecacuanha dos tupis, referência ao seu formato de ‘pinto de pato’, para barganhar por aguardente. Marlière deixa clara sua restrição: “(…) em cujo negócio todos sabem que não entro”. 
 
Obriga seus soldados a se casarem com as índias solteiras com as quais mantivessem relações sexuais e incentiva o casamento como forma de “promover a civilização”. As traições sexuais nos presídios, além das vinganças costumeiras do marido, recebem dose extra de severa punição por parte do Comandante. Em 1825 Marlière comunica ao Presidente da Província: "Esta Colônia (…) formiga de mulheres que vivem de prostituição, não trabalham, por que a proximidade dos soldados das Quatro Divisões que se concentram no Rio Doce fornecem o seu alimento, mas elas também não lhes poupam o gálico (sífilis). (…) Mandei buscar hoje duas matronas daquelas e foram achadas pelo cirurgião com provas suficiente de sífilis para infestar um exército".
 
 
INCENTIVO ÀS ATIVIDADES AGRÍCOLAS
 
Como Diretor Geral, incentiva as atividades agrícolas dos presídios e quartéis através de gratificações aos soldados envolvidos nas roças, principalmente de milho e mandioca. A colheita é partilhada entre os índios ajudantes. As condições de vida dos soldados não eram lá essas coisas e os pedidos de reforma eram constantes. Em 1827, Marlière recebe o pedido de reforma de um soldado que alegava não enxergar bem. Desconfiado, analisa o pedido e verifica que o praça contava com 40 anos de serviço e 84 anos de idade. 
Marlière deixa quase sempre para dona Maria Vitória o cuidado com a Fazenda de 252 alqueires. De 1824 a 1826, o militar francês se ausenta por 20 meses em peregrinação pelas matas. Os naturalistas alteram roteiros e percorrem distâncias consideráveis em busca das observações e experiência de Marlière, conversa esclarecida em meio ao obscurantismo reinante. Freyreiss e Eschwege o visitam em 1815, Spix e Martius em 1817. 
 
Em julho de 1824 Langsdorff esperava encontrá-lo e se decepciona ao receber a “notícia segura e desagradável” de que Marlière estava ausente de Guido Wald. Langsdorff segue direto para Mariana. 
 
 
SAINT-HILAIRE ESCREVE SOBRE MARLIÈRE
 
 
 
 
 
 
O botânico Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) dedica alguns parágrafos de seu livro ‘Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce’ ao militar seu conterrâneo: “ (…) A fim de interessar mais e mais os botocudos, Marlière mandou fazer plantações para eles. Ele empregava nesses serviços soldados das divisões militares, e teve muitas vezes o prazer de ver estes últimos abraçar os selvagens, que eles pouco antes exterminavam, como animais selvagens. Um dos primeiros cuidados de Marlière foi severa vigilância entre os soldados das divisões. Ele conseguira a reforma dos velhos amansadores de índios; são essas as suas expressões; e os havia substituído por homens menos bárbaros e estabeleceu, como regra geral, que não haveria promoção fácil para os soldados cuja conduta tendesse a afastar os indígenas. Marlière fixou seu quartel general no sítio chamado Galho, acima da confluência do rio de Santo Antonio e fez aí plantações de bananeiras, de mandioca, de milho, de arroz, de abacaxis, de cafeeiros, etc., das quais os resultados foram além da sua expectativa. (…) 
 
UMA CIRCUNSTÂNCIA PARTICULAR INTERESSAVA os mineiros a se estabelecerem nesta região. O governo cometera o erro de conceder, por 20 anos, a uma sociedade anglo-brasileira, a navegação do Rio Doce e a pesquisa do ouro neste rio e nos seus afluentes. Ciumentos de verem os estrangeiros despojá-los de suas riquezas, para ir usufruí-las, rapidamente, na Europa, os naturais se apressavam em evitá-los e se espalhavam nestas florestas imensas, apesar de povoadas apenas por botocudos. Pelo que respeita a estes últimos, o ministério e o governo provincial de Minas Gerais, é forçoso que se lhes faça justiça, favoreciam, por todos os modos, as benfazejas intenções de Marlière. Convidaram-no a expor suas ideias sobre as medidas que se deveriam tomar a fim de consolidar seus trabalhos e apressar a civilização dos indígenas. Marlière respondeu com uma nobre franqueza, não temeu em assinalar os abusos e indicou meios que lhe pareceram mais próprios para assegurar a felicidade dos indígenas. Suas memórias dedicadas aos administradores mostram uma ingenuidade cavalheiresca, que não pertence mais à nossa época. Na minha correspondência com este homem de bem, eu lhe submetera algumas ideias que mereceram sua aprovação e não pude ler, confesso, sem um profundo enternecimento as palavras seguintes que achei numa de suas cartas; elas foram para mim uma recompensa bem lisonjeira e que eu absolutamente não mereci: ´Eu me aflijo pela vossa má saúde, como se vós fosseis um irmão; vós não sereis chorado apenas pelos que se dedicam à ciência; o sereis também, pelos meus pobres índios; eles aprenderam que, noutro hemisfério, têm um amigo que pleiteia sua causa no tribunal da humanidade; eu serei vosso intérprete junto a eles, logo que eles me possam compreender`. 
 
MARLIÈRE PROPÔS AO GOVERNO DE MINAS encorajar os casamentos mistos, chamar para ministrar a instrução moral e religiosa aos botocudos alguns padres estrangeiros, que não fossem imbuídos dos mesmos preconceitos que os padres mineiros, embora muito poucos regulares, compartilhassem com o resto de seus compatriotas, afastar das aldeias os desertores e os vadios que roubam aos índios, os maltratam e ofendem às suas mulheres; proibir aos comandantes dos distritos mandar índios longe de sua região, entre homens que os fazem trabalhar com pancadas, nas grandes estradas; restringir o comércio de aguardente nas aldeias, conceder indenizações aos mestres de ofícios que se queiram encarregar de os ensinar aos índios moços (aqui o sr. Marlière cita o tenente-coronel Joaquim dos Reis, que, embora muito pobre, criara um grande número de moços índios); substituir por oficiais da reserva os atuais diretores das aldeias, geralmente ignorantes, preguiçosos e sem dignidade; fazer restituir aos índios as terras roubadas, etc. ´Amor e lealdade para com eles, meus amigos – exclamava Marlière – e teremos homens!` Mas, para executar os planos do bom Marlière seriam necessários homens que se lhe assemelhassem. Onde os encontrar?
 
´CINQUENTA E OITO ANOS BATEM À MINHA PORTA — escrevia-me ele — tenho dois ferimentos: tenho 40 anos de lutas; viajei inúmeras vezes e quase sempre tinha de me contentar com má alimentação. Teria necessidade de algum repouso, mas procuro em vão um sucessor; ser-me-á necessário morrer por esta pobre gente e entre eles`. Marlière deu aos luso-brasileiros a posse de uma extensão imensa de florestas e fez aos índios todo o bem que lhes podia fazer; procurou para eles alguns anos de paz. Entretanto, o vestígio de seus nobres benefícios se apagará dentro em breve; e não terão conseguido, realmente, senão o resultado de acelerar a destruição daqueles de quem ele queria fazer a felicidade.
 
´NÃO OUSO ESPERAR A FELICIDADE de ver estes meninos outra vez`, escrevia ele ao governador de Minas, falando de alguns jovens botocudos dos quais ele custeava a educação no Rio de Janeiro; ´mas eles guardarão na sua lembrança o capitão Nherame (o capitão velho) e virão pagar o tributo das lágrimas de sentimento, onde descansarem meus ossos, porque sou um amigo destes homens da natureza`. Oh! Sem dúvida eles terão muita razão de prantear o velho capitão; porém, estes homens fracos sofrerão e não lastimarão o velho chefe. Devo dizer, entretanto, que o jovem índio Pedro Telle, que eu levei das missões do Uruguai para a França, e que serve hoje na Legião Estrangeira, em Algéria, escreveu, do seu próprio punho, aos seus benfeitores, logo que chegou em África, testemunhando seu agradecimento”.
 
 
 
 
 
 
PROXIMA EDIÇÃO 284 – NOVEMBRO- Parte final – De seu auto-exílio, Guido Marlière recebe por 18 anos cargos militares cada vez mais elevados. Participa da sociedade fraternal da maçonaria, escreve textos combativos e divulga os costumes e lendas dos indígenas nos jornais “O Universal” e “A Abelha do Itacolomi”, de Ouro Preto.  A corrupção geral, esta velha conhecida dos brasileiros, irrita o rígido militar e o torna persona non grata entre os colegas coniventes com a prática que já era consensual desde aqueles tempos. A insistência em se bater pela moralidade e punir subordinados corruptos míngua o número de seus amigos e incrementa os de seus desafetos.