Velho Chico

São Francisco

7 de novembro de 2017

A alma sertaneja de um rio

 

 

 

Maria Elisa Costa, arquiteta e ex-presidente do Iphan.

 

Conheci o Velho Chico na sua foz, entre Penedo e Piaçabuçu. Largo, generoso, cor de doce de leite, com suas pequeninas canoas de velas quadradas. Dono e senhor do território.

Depois, foi Pirapora, com águas verdes. Passadas as últimas corredeiras, ele se deixa navegar – navegar é preciso. Mas não se navega mais. Os barcos que um dia souberam agradecer sua bênção, hoje são restos de estruturas de madeira, parados na margem – no espaço e no tempo.

 
 
 
Galhos de árvore no leito do rio, consequência do desmatamento de suas margens e do arrasto das águas das tempestades.
 
 
 
 
NA BARRA DO GUAICUÍ – o Rio das Velhas, que vem lá de Belo Horizonte – a ruína sem telhado de uma capela jesuíta; isolada num promontório debruçado sobre a água, teve seu altar-mor substituído pelas fantásticas raízes de uma imensa gameleira – a árvore do Tempo – como que dizendo e repetindo para ninguém a vocação para renascer daquele rio.
 
E a cachoeira de Paulo Afonso, tão desafiadora e altiva, poderosa, soberba, revelando súbita e inesperadamente toda a energia daquela massa de água que até ali seguia seu curso discretamente, e naquele ponto se permitia explodir, extravasar-se, romper a aparente mansidão – tiraram-lhe o sangue, voraz e violentamente, para produzir apenas energia elétrica, em corações artificiais enormes, desmedidos. Manipulou-se o território com a assustadora desenvoltura de deuses, afogaram-se vivos povoados ribeirinhos e terras férteis de aluvião. Lá em cima da gigantesca barragem, a lancha corre veloz sobre uma vida submersa, retirada do mapa. No sopé da muralha, resta – no que um dia foi um alto – o pequeno cemitério quadrado da Canindé original.
 
E no local da cachoeira, na pedra agora seca, impera hoje o silêncio de uma cachoeira morta: tudo vai para o coração artificial, que às vezes se dá o direito de permitir um “replay” do antigo esplendor para alguma festa, fazendo de conta que a verdade é outra.
 
LEMBRANÇAS – No início do baixo curso, o pequeno porto de Piranhas permanece, como que à espera não se sabe bem do que, testemunhando tempos idos de estradas de ferro e caminhos de água. Ainda se lava roupa na beira do rio, mulheres fazem renda em Entremontes, passam raras canoas. Conta-se a história de Lampião, acaricia-se as lembranças, que são o único alimento disponível.
 
Uma vez, voltando de Belém para o Rio ao amanhecer, olhei da janela do avião e vi, lá embaixo, uma fita cor de rosa salmão refletindo a luz do sol nascente, contínua, solitária, definitiva. Era ele, o São Francisco.
 
E lá vai ele, com sua alma sertaneja, fiel a si próprio, fluindo sempre, na sua sóbria e contida resistência de fera ferida. E continuará a fluir, até que seja exaurida a última gota. 
 
Morrerá como quem sabe da sua verdade e da sua razão de ser.