Naturalistas Viajantes - Guido Marlière

Freyreiss, Eschwege e Marlière: caminhos que se cruzam no interior do Brasil.

6 de novembro de 2017

(Parte Final)

 

 

 

 

A epopeia dos naturalistas viajantes continua. Muitos botânicos aventureiros se embrenharam pelas matas, rios, montanhas, tribos indígenas pesquisando flora, fauna, grutas, povo, cultura e a alma tropical brasileira. Cortaram o Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Todos eles vieram para o Brasil por uma paixão desenfreada pela mega diversidade do solo brasileiro. Todos deixaram a tranquilidade e o conforto da Europa para enfrentarem condições difíceis e terras inóspitas em busca do conhecimento. Relatórios, desenhos, pesquisas e estudos aprofundados da natureza exuberante e misteriosa de um país continental chamado Brasil estão hoje em várias universidades, bibliotecas e academias de ciências espalhados pelo mundo. Estamos na parte final da aventura de Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), Wilhelm Ludwig von Eschwege  (1777-1855) e de Guido Thomaz Marlière (França 1767 – Minas Gerais 1836). As coleções feitas por Freyreiss enriqueceram a Academia de Ciências da Suécia. Georg Freyreiss viajou pela Província de Minas Gerais em companhia do Barão Eschwege, que vai a Abaeté para inspecionar a prospecção de chumbo na região. Eschwege teve importância na modernização das práticas extrativas de minerais, pois ele foi como pioneiro da indústria siderúrgica brasileira. E Guido Marlière, o grande percussor dos indianistas brasileiros.
 
Sim, Guido Marlière abriu o caminho para entender e respeitar mais os índios. O militar mato-grossense meio índio Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o médico brasileiro nascido na Ucrânia Noel Nütels (1913-1973), os irmãos paulistas Leonardo (1918-1961), Cláudio (1916-1998) e Orlando Villas-Boas (1914-2002) e o mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997) tiveram em Guido Marlière um precursor no sonho de uma sociedade enriquecida com a alegria, bondade natural e ingenuidade dos indígenas. Quando mostramos um caminho a alguém e dizemos ‘é ali’ e espichamos o beiço, é a influência indígena manifestada em nossa formação. 
 
 
 
GUIDO MARLIÈRE, O RÍGIDO MILITAR
 
De seu auto-exílio, Guido Marlière recebe por 18 anos cargos militares cada vez mais elevados. Participa da sociedade fraternal da maçonaria, escreve textos combativos e divulga os costumes e lendas dos indígenas nos jornais “O Universal” e “A Abelha do Itacolomi”, de Ouro Preto.  
 
A corrupção geral irrita o rígido militar e o torna persona non grata entre os colegas coniventes com a prática que já era consensual desde aqueles tempos. A insistência em se bater pela moralidade e punir subordinados corruptos míngua o número de seus amigos e incrementa os de seus desafetos.  
 
Muitos viam nele um homem estranho e excêntrico, crítico irônico dos dogmas religiosos. À imagem do soldado severo, sobrepõe-se a do comandante generoso que oferece banquetes aos índios e soldados em sua fazenda, quando então divulga suas idéias abolicionistas e projetos sociais. 
 
Acusado de impiedade religiosa, abatido pela malária e magoado por não ter recebido o título de Barão do Rio Doce, retira-se em 1830 para sua fazenda Guido Wald, no antigo Sapé de Ubá, de onde se corresponde com naturalistas e viajantes e escreve dois dicionários de línguas indígenas.  Em 6 de junho de 1836, dona Maria Vitória chora a morte de Marlière, tendo como coadjuvantes índios de tribos variadas. Acredita-se que o militar tenha sido enterrado sentado, à moda indígena, segundo seu próprio desejo. Na sepultura, a viúva planta uma figueira e corta uns cachos de cabelos do esposo para anexar ao medalhão que traz a única reprodução conhecida do semblante do Coronel Guido Marlière. 
 
 
GERAÇÃO MARLIÈRE
 
Assunto obscuro é a descendência deixada pelo militar, famoso por sua rigidez moral. Talvez a máxima da época “não existe pecado abaixo do Equador”, talvez a influência dos indígenas livres de culpas sexuais, talvez a incapacidade de dona Maria Vitória de engravidar ou a possibilidade menos provável de um casamento moldado por um amor isento dos prazeres físicos, o certo é que Marlière teve apenas filhos avulsos, homens e mulheres. Nenhum com dona Maria Vitória. Seu filho Leopoldo Guido Marlière (1816-1863), único registrado com seu sobrenome, é aceito pela esposa na fazenda. Dona Maria Vitória o educa e participa também da educação de seus netos postiços. Tem especial afeto pela mais velha, Maria Flávia Marlière. Leopoldo, mais conhecido pelo apelido jocoso de Cadete, é responsável pelo sobrenome Marlière manter-se até os nossos dias. 
 
 
DEPOIMENTOS SOBRE MARLIÈRE
 
A Revista do IBGE publica depoimentos de José Feliciano França e de Manuel Basílio Furtado (1826-1903) sobre Marlière, republicados na Revista do Arquivo Público Mineiro , dirigido por Augusto de Lima, nos fascículos I, II, III e IV do ano XI, “Notícias e Documentos sobre sua Vida”, em 1906. Basílio Furtado, médico e escritor nascido em Queluz – atual Conselheiro Lafaiete – relembra ter visto em sua juventude a sepultura, a ‘tebi’ dos indígenas, de Guido Marlière em 1842, “na Serra da Onça, tão triste e tão solitária como se fosse de um salteador da Serra Morena que tivesse sido justiçado no deserto, lugar de suas façanhas criminosas (…)”. A própria viúva dona Maria Vitória, “senhora inteligente e de acrisoladas e nunca desmentidas virtudes”, a mostrou de uma das janelas da antiga fazenda. A gameleira ou figueira branca (Ficus dolcaria, Mart) plantada por ela para sombrear o jazigo, ainda vista pelo nosso repórter diletante de antanho, não resistiu aos descuidos posteriores à morte de sua cuidadora, por volta de 1870. Dona Maria Vitória também foi sepultada à sua sombra. O doutor Basílio escreve em 1891, ao mudar-se para Santana do Sapé, ex-Sapé de Ubá, local da antiga fazenda e que em 1943 passaria a se chamar Guidoval: “Atualmente será difícil descobrir o local da sepultura: A figueira, a casa de morada, a caserna, já não existem; o mato e a lavoura acabaram de apagar o último vestígio que pudesse haver. Uma de suas filhas dizia que ‘compatriotas de seu falecido pai’ profanaram a sepultura ‘e arrecadaram tudo que havia de valor: espada, condecorações, etc.’.As famílias ainda existentes de Coroados, Puris e Coropós nada orientam do lugar da Tibi de seu antigo amigo e benfeitor! Também não sabem mais uma só palavra de seu dialeto primitivo e desconhecem completamente as indústrias de seus antepassados, como o fabrico de redes de pescar, de dormir, de esteiras, de cestos, de arcos, de flechas, de bodoque, etc.”. 
 
 
DA MEDALHA O BUSCO DE MARLIÈRE
 
Algumas filhas do militar ainda viviam e os depoimentos que ouve descrevem Guido Marlière como portador de um nariz muito afilado e retilíneo, olhos azuis e pomos faciais salientes, mais parecido ser de origem germânica que francesa. Tenta conseguir para os Arquivos Históricos de Minas Gerais a pequena medalha bem deteriorada de Marlière, herdada por Maria Flávia Marlière como presente de sua avó, mas a neta se nega a separar-se da lembrança, que continha ainda mechas de cabelos do Coronel e de seu filho.  Tempos depois, a mesma medalha  possibilitaria ao Arquivo Público Mineiro obter em 1904 cópia do busto de Marlière em pintura do artista Horácio Esteves. 
 
O senhor Orozelino Joaquim Caetano, octogenário, conheceu o índio Luciano, que convivera com Marlière. O Sr. Orozelino trabalhou no começo do século XX como carreiro, conduzindo café da Serra da Onça para a estação de Dona Eusébia, atual Astolfo Dutra. Segundo ele, Luciano costumava dizer: "Menino, não atiro em onça porque onde ela está não chegam outros bichos. E da onça a gente se defende bem”. Luciano tinha sua aldeia na Serra da Neblina e faleceu com bem mais de cem anos de idade.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
HOMENAGEM DE MARLIÉRIA E OUTRAS CIDADES
 
Numerosas povoações e municípios resultaram dos aldeamentos indígenas de Marlière: Presídio de São João Batista (Visconde do Rio Branco), Guiricema, Santa Rita do Meia-Pataca (Cataguases), São Geraldo, São Paulo do Manoel do Burgo (Muriaé), Arraial do Brejo (Miraí), Dona Eusébia (Astolfo Dutra), Arraial do Lajão (Conselheiro Pena), Porto da Figueira do Rio Doce (Governador Valadares), Pocrane, Tarumirim, Resplendor, São Domingos do Prata, Santo Antônio do Caratinga (Mesquita), São José do Grama (Jaguaraçu), São Miguel do Jequitinhonha (Jequitinhonha), São Manoel do Pomba (Rio Pomba) e outros mais. As cidades de Guidoval e Marliéria rendem homenagem explícita à lembrança do Coronel francês. 
 
Em 1927 foram exumados os restos mortais de Guido Marlière, por iniciativa do ex-senador  e governador de Minas, Levindo Eduardo Coelho, quando vice-presidente da Câmara Municipal de Ubá. No ano seguinte, na presença do Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, houve a inauguração solene do Monumento do Guido, no entroncamento rodoviário de Cataguases, Ubá, Rio Pomba e Rio Branco.
 
 
 
 
 
 
 
QUATRO FACES DE UM LÍDER
 
Na face voltada para Cataguases está gravado:
“Na colina em frente está o cemitério dos índios onde está sepultado o grande patriota”. 
 
Na face voltada para Ubá: 
“Neste sítio, fazenda de Guidoval, existia a casa de sua moradia”. 
 
Na outra, voltada para Rio Branco:
“Falecido em 1836. Transladadas para esta urna, aqui estão guardadas suas cinzas”. 
 
E a última face:
“À memória de Guido Tomás Marlière, o desbravador das selvas e civilizador dos índios, abrindo estradas e semeando núcleos de população, as Câmaras Municipais de Ubá, Cataguases, Rio Branco e Pomba fizeram erigir este monumento, símbolo de gratidão ao pioneiro do progresso de Minas”.
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
Fontes: "Marlière, o Civilizador" de Oiliam José. Editora Itatiaia Ltda – Belo Horizonte – 1958
 
Tese sobre Guido Thomaz Marlière e os Índios Botocudo nos Sertão do Leste. Thiago Henrique Mota Silva – Universidade Federal de Viçosa
 
Artigo da Revista Fênix: Os Ecos Autoritários da Marselhesa: Guido Thomaz Marlière e a Colonização dos Sertões do Rio Doce. José Otávio Aguiar – Universidade Federal de Campina Grande
 
Revista do Arquivo Público Mineiro, fascículos I, II, III e IV do ano XI, “Notícias e Documentos sobre sua Vida”, em 1906.