Naturalistas Viajantes

Jean de Léry

9 de janeiro de 2018

O naturalista que entrou de gaiato no navio

 

 “Uma vez em terra, caminhei ao longo da Avenida Rio Branco, 
onde uma vez existiram as aldeias tupinambás; 
no meu bolso havia aquele breviário do antropólogo, Jean de Léry. 
Ele chegou ao Rio 378 anos antes, quase no mesmo dia”.
Claude Lévi-Strauss em ‘Tristes Trópicos’, ao chegar ao Rio de Janeiro em 1934. 
 
 
 
Jean de Léry (1536-1613) entrou de gaiato no navio. Para nossa sorte. Acreditou na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) e embarcou em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas. Com a mesma competência, trabalhava o couro e as palavras. Os sapatos e botas que saíram de suas mãos não mais existem, mas suas aventuras e observações estão eternizadas em um livro que deve ser obrigatório em qualquer biblioteca.
 
 
 
Lévi-Strauss assim se refere a Léry: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
 
 

 

 

O QUE TEM A VER A BASÍLICA DE SÃO PEDRO COM O BRASIL?
 
Essa é uma história interessante e verdadeira. Que sequência de eventos poderia associar a reconstrução da Basílica de São Pedro em Roma pelo papa Leão X, nos primórdios do século XVI, com a vinda de Léry para o Brasil? Simples assim: Leão X encarregou um padre católico para arrecadar fundos para a reforma da basílica com a venda de indulgências na Alemanha. Indulgências são o perdão parcial ou total dos pecados. O mote do padre encarregado das vendas era: "Assim que uma moeda tilinta no cofre, uma alma sai do Purgatório". 
 
Martinho Lutero (1483-1546), monge católico e teólogo alemão, se revolta com a comercialização do que acredita ser um atributo divino, rompe formalmente sua obediência às leis papais e propõe a reforma religiosa. O humanista francês João Calvino (1509-1564) adere à Igreja Reformada ou Protestantismo e leva além o conceito. O oportunista Villegaignon percebe nos conflitos religiosos deflagrados a oportunidade de colonizar sua sonhada França Antártica. O nobre francês Gaspar de Coligny acredita na proposta e solicita a Genebra religiosos reformados para preparar terreno ao que seria o reduto de milhares de protestantes perseguidos na Europa. Do grupo, faz parte o estudante de teologia Jean de Léry, “que, tanto pela vontade de servir a Deus, como curioso de ver terras novas, me decidi a fazer parte da comitiva”.
 
 
ORIGINAIS DO LIVRO DE LÉRY
 
Não foi preciso muito esforço dos portugueses para colocar fim ao empreendimento. As tensões internas e a inconstância de Villegaignon praticamente volatizaram a possibilidade da Cidade Maravilhosa e a Cidade Luz coexistirem nos trópicos. Mas isso seria covardia com o resto do mundo! Talvez assim Lévi-Strauss não achasse os trópicos tão tristes.
 
Por pouco o livro de Léry não chega até nós. Solícito aos amigos que viam a importância de seu depoimento, Léry coordena suas anotações, escreve um documento e encaminha para publicação. O desastrado portador perde os originais e Léry refaz de memória o livro, que é novamente perdido em meio aos conflitos religiosos. Um nobre francês, que desconhecemos o nome e a quem devemos eterna gratidão, não se conforma e investe seu prestígio para reencontrar o primeiro original, que é então publicado com 20 anos de atraso. 
 
Há vários séculos o livro de Léry coleciona leitores de prestígio como os pensadores Michel de Montaigne (1533-1592), que se inspira em um trecho em seus ‘Ensaios’, e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
 
Nos capítulos iniciais, Léry descreve “do motivo que nos levou a empreender tão penosa viagem”. Relata a partida das três naus da Normandia em novembro de 1556 e as ações de pirataria e covardia dos marinheiros franceses: “Neste primeiro encontro vi que no mar é como em terra: o mais forte domina e dá leis ao mais fraco”.
 
Não esquece um fato curioso que testemunha e faz questão de registrar. A dança da ‘selha’, que é uma espécie de gamela: “Contarei ainda uma coisa notável. Durante essa tempestade que durou quatro dias, o nosso cozinheiro pusera pela manhã toucinho numa selha de madeira para dessalgar; veio uma rabanada de onda e lançou a selha ao mar, à distância de um tiro de dardo; outra vaga, porém, vinda em sentido contrário, trouxe outra vez a vasilha ao convés, sem que no ir e vir se entornasse o conteúdo, o que nos restituiu o jantar que havia ido por água abaixo…”
 
 
PROXIMA EDIÇÃO 287 – Fevereiro de 2018 – JEAN DE LÉRY – Parte 2
 
Jean Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo. Seis homens e uma mulher visitam o navio e “depois que admiraram nossas peças e tudo o mais que desejaram no navio, (…) tratamos de pagar-lhes os víveres que nos haviam trazido. Ao sentarem-se no escaler, os índios arregaçaram-se até o umbigo a fim de não estragar as vestes e descobriram tudo que convinha ocultar, querendo, ao despedir-se, que lhes víssemos ainda as nádegas e o traseiro”.