Clovis Cavalcanti passa em revista projetos sem sustentabilidade como Transposição do Velho Chico, porto de Suape e Belo Monte.
A encíclica ‘Laudato Si’ do Papa Francisco tem que ser levada a sério. O São Francisco definha e o rio é muito pouco para a insanidade da Transposição. Sempre verdadeiro e contundente, o professor Clóvis Cavalcanti aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, fala com exclusividade para a ‘Folha do Meio Ambiente’ sobre questões de sustentabilidade. Clóvis Cavalcanti lecionou Meio Ambiente e Sociedade, entre outras disciplinas e é pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabuco, onde foi superintende do Instituto de Pesquisas Sociais durante 22 anos e meio. A sua trajetória acadêmica, profissional e existencial sempre esteve vinculada à promoção da sustentabilidade, numa época que esse tema nem era visualizado pela própria sociedade brasileira. Clóvis Cavalcanti foi eleito presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica, organização internacional, sediada em Boston, que reúne pensadores de todas as partes do mundo, numa composição multidisciplinar de economistas, ecólogos, químicos, físicos, cientistas políticos, biólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, engenheiros, gestores ambientais e pedagogos preocupados em oferecer uma perspectiva ecológica para a economia no Planeta. Clóvis é pai de Tiago Cavalcanti, professor de desenvolvimento econômico da Universidade de Cambridge. Tiago foi conselheiro econômico do então candidato à Presidência da República, Eduardo Campos.
Clóvis Cavalcanti: “Nunca imaginei que iria ter a oportunidade de conversar com um Papa no Vaticano. Conversar, e não simplesmente ver Sua Santidade. Pois isso aconteceu no dia 23 de novembro de 2017. Desde que li a encíclica papal ‘Laudato Si’, senti o desejo de colaborar com o Vaticano na difusão e aplicação dos ensinamentos nela contidos.
RM – Desde a década de 70, o senhor se opunha ao projeto do Porto de Suape. Recordo a força de sua militância e a tenacidade de sua oposição à construção do porto naquela área. A evolução do comércio internacional e o superdimensionamento dos navios modernos exigia a construção de um porto de águas profundas na região Nordeste. Entretanto, os danos ambientais causados pela construção do porto, que o senhor denuncia há quase meio século são irreparáveis, estão presentes até esta data. O que pode ser feito para reduzir esse impacto?
CC – Francamente, não sei. Em 1986, quando Miguel Arraes foi eleito governador de Pernambuco, sugeri-lhe que interrompesse as obras de Suape, e que não aceitasse que uma refinaria de petróleo fosse construída ali. Seria possível pensar em novo destino para a área – inclusive deixá-la como sempre tinha sido. Não fui ouvido. No segundo mandato de Eduardo Campos (2011-2014), medidas de mitigação da destruição ambiental foram adotadas. Mas a agressão socioambiental não se abate. Prevalece o interesse econômico privado, de curtíssimo prazo.
RM – De que modo a ISEE interage com governos para a obtenção de resultados econômicos respeitando-se a proteção ambiental? Ou como a sua gestão poderá colaborar para que o Brasil possa otimizar o uso dos recursos naturais e os vetores econômicos?
CC – Como toda sociedade científica, nós procuramos oferecer bases para políticas públicas voltadas para um uso prudente, sóbrio da natureza. Temos balizamentos para isso, com base, por exemplo, na chamada “pegada ecológica”, instrumento criado por dois integrantes da ISEE – Martin Rees, canadense, professor da Universidade de British Columbia, no Canadá, e Mathis Wackernagel, suíço, orientando de Rees e presidente da Global Footprint Network. O Reino do Butão usa a pegada ecológica nas suas iniciativas de política.
RM – As graves agressões ao meio ambiente brasileiro poderão ser reduzidas com a participação ou intervenção da ISEE?
CC – O que nós podemos fazer é protestar e procurar espaço junto aos órgãos que tratam do meio ambiente no Brasil. Isso tem ocorrido. O BNDES, por exemplo, com Luciano Coutinho na presidência, apoiou alguns eventos que organizamos, inclusive o XII Encontro Bienal da ISEE, no Rio, em 2012, pouco antes da Rio+20. Mas as resistências de todo lado são grandes.Quem nos deu um bom apoio foi Gustavo Krause, quando ministro do Meio Ambiente (1995-1998), secundado por Raul Jungmann na presidência do Ibama. Preparamos um estudo para o Ministério, em 1996, indicando que orientações a economia ecológica podia oferecer nas políticas públicas nacionais. Com Marina Silva, em 2003, esperávamos avançar. No entanto, a superpoderosa Dilma Rousseff bloqueava tudo e terminou forçando a humilhação de Marina ter que renunciar ao cargo em 2008. Aí veio a desgraça que é Belo Monte – e outras muitas. O agronegócio entre elas. Em dezembro de 2009, na 19ª COP do clima, em Copenhague, Dilma, estranhamente chefiando a delegação brasileira, afirmou em entrevista que "o meio ambiente é sem dúvida nenhuma uma ameaça ao desenvolvimento sustentável" (ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=oSbXsK8Dpeg). Foi um retrocesso monumental. Até hoje pagamos por isso.
RM – A crise hídrica brasileira começa a gerar graves conflitos sociais. Qual seriam os mecanismos a serem adotados para compatibilizar a oferta hídrica com as necessidades humanas de abastecimento e a produção agrícola?
CC – Primeiro que tudo, respeitar o balanço entre o que entra e o que sai dos aquíferos. É como numa conta de poupança. Se você retira mais do que ela rende, o principal vai diminuir – até zerar. A regra é a mesma para qualquer recurso da natureza, com entendimento diferente, e ainda mais rigoroso, no caso dos recursos não-renováveis. Tem-se que perguntar antes que pegada ecológica o planeta é capaz de suportar. Certamente, uma em que seu valor esteja abaixo do da capacidade biofísica do ecossistema terrestre. Sem contar que muitas atividades econômicas causam desgraças humanas inaceitáveis, como no caso do agronegócio que está matando os recursos hídricos, sagrados para as populações locais, do vale do São Francisco. O Comitê de Bacia do São Francisco deveria ser a instância para dizer como se compatibilizar a oferta hídrica com as necessidades humanas de abastecimento e a produção agrícola. Na verdade, todo o entendimento político da economia ecológica requer a participação dos atores envolvidos em qualquer iniciativa de política pública.
A INSANIDADE DA TRANSPOSIÇÃO
O rio São Francisco definha.
O São Francisco é muito pouco
para a insanidade da Transposição
RM – Na década de 90, a vazão do Rio São Francisco era de 2.200m³/s, enquanto que hoje a sua vazão está reduzida a 650m³/s, justamente quando entra em funcionamento a Transposição do Rio São Francisco, que deverá atender à vazão contínua de 26m³/s para abastecer os eixos Norte e Leste. Quais os danos ambientais decorrentes da transposição que poderão ocorrer na região?
CC – Meu amigo e colega pesquisador João Suassuna tem demonstrado à exaustão a inviabilidade do projeto de Transposição. O São Francisco definha. Precisaria ser revigorado, revitalizado. E não servir para perder ainda mais o pouco que lhe resta de água. A Transposição implica em evaporação e desvios de água ao longo dos canais. O São Francisco é muito pouco para essa insanidade. Aliás, uma pesquisa de 1983, da Fundação Joaquim Nabuco, feita para o Ministério do Interior, no período militar, mostrava ser indesejado tal projeto. Os militares o aposentaram.
RM – O Fórum Mundial da Água 2018 será realizado em Brasília. Por ser a capital do Brasil, Brasília é o centro geográfico/político do exclusivo Bioma Cerrado. Que contradições podem ser apontadas nesse encontro, desde que o Cerrado está praticamente dizimado e o bioma é considerado uma poderosa caixa-d’água do Brasil?
CC – Vejo nesse evento uma chance de sacudir a inércia quanto a dolorosa constatação de que o extraordinário bioma do Cerrado é vítima de um crime hediondo contra a humanidade.
RM – Quais as principais medidas a serem adotadas pelos órgãos públicos brasileiros para disciplinar o uso eficiente dos recursos naturais, que permitam o desenvolvimento sustentável?
CC – Não há receitas prontas de medidas que deveriam ser adotadas, no meu entender. Mas se poderia começar indicando a necessidade que a sociedade tem de respeitar a capacidade dos ecossistemas de fornecer recursos renováveis e absorver dejetos da produção econômica (capacidade de suporte, capacidade de carga). O menor dos dois limites – (1) retirada de recursos e (2) acumulação de lixo (matéria e energia degradadas de todo tipo) – deveria determinar como cada bioma seria utilizado.
Para consumir, é preciso produzir. E produção de qualquer coisa exige recursos da única fonte que os pode fornecer – a natureza. Extrair recursos, por sua vez, é como cavar buracos, alguns dos quais não param de crescer e são eternos. Depois do consumo, os bens viram energia e matéria degradadas, as quais são inexoravelmente lançadas de volta ao meio ambiente. Fazer isso é como amontoar sujeira – sujeira essa que é eterna e não pára de crescer em muitos casos. O buraco cavado e o monte de porcaria representam o custo ambiental da atividade humana (pegada ecológica), ignorado no modelo econômico do crescimento a todo custo, que governa o mundo. Esse custo tem que ser minimizado. Para que tudo aconteça, a participação da sociedade é fundamental.
Na ‘Laudato Si’, o Papa Francisco critica, com toda razão, a “cultura do descarte”, com seu conteúdo de consumir e jogar fora de modo cada vez mais veloz os artefatos adquiridos.
RM – Aliás, importantes relatórios documentaram e fizeram este alerta…
CC – Sim, bem lembrado. Isso está previsto na chamada Agenda 21, elaborada na RIO-92, com o título de “diálogo dos stakeholders”. Seria o caso de se ter discutido com as comunidades do São Francisco, antes da elaboração de projetos como os do agronegócio, Transposição, etc., que espaço de entendimento existia. O que se tem feito, entretanto, é impor goela abaixo, iniciativas que destroem formas de vida, culturas, o meio ambiente. Os custos que isso significa são completamente ignorados, como se não fizessem sentido. Um erro trágico do ponto de vista da própria sobrevivência da espécie humana.
Na ‘Laudato Si’, o Papa Francisco critica, com toda razão, a “cultura do descarte”, com seu conteúdo de consumir e jogar fora de modo cada vez mais veloz os artefatos adquiridos. Segundo a Encíclica de junho de 2015, o ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões.