(Parte 3) Jean de Léry explica costumes e comportamento dos índios
2 de março de 2018
Jean de Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi há mais de 400 anos.
As histórias que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros deveria ser leitura obrigatória em todas escolas. Jean de Léry (1536-1613) faz narrativas preciosas do comportamento, dos costumes e das preferências estéticas dos nativos. Jean de Léry entrou de gaiato no navio do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) e, para nossa sorte, passou a fazer relatos importantes sobre o Brasil recém descoberto.
A nudez foi o que provocou maiores dissabores à vida dos indígenas. Obrigados a envergar roupas, nunca entenderam a necessidade de lavá-las, deixando-as no corpo até se acabarem.
O que Léry observa e anota permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta. O modo de viver dos indígenas impressiona nosso magoado cronista, recém egresso de um ambiente em litígio filosófico: “E de fato nem bebem eles nessas fontes lodosas e pestilentas que corroem os ossos, dessoram a medula, debilitam o corpo e consomem o espírito e que são a desconfiança e a avareza, os processos e intrigas, a inveja e a ambição Nada disso os inquieta e menos ainda os apaixona e domina, como adiante mostrarei. E parece que haurem todos eles na fonte da Juventude”.
PREFERÊNCIAS ESTÉTICAS
As preferências estéticas dos nativos são listadas e o conceito de ‘fashion’ é perturbador: “Têm pelos como nós, mas apenas lhes repontam pelos em qualquer parte do corpo, mesmo nas pálpebras e sobrancelhas, arrancam-nos com as unhas e pinças que lhes dão os cristãos. (…) Aliás, o fato de arrancá-los das pálpebras e sobrancelhas torna-lhes a vista zarolha e feroz. (…) existem nesse país certas plantas cujas folhas de largura de quase dois dedos, côncavas como a palha de milho (…) com as quais os velhos usam envolver o membro viril atando-as com fios de algodão; também costumam envolvê-los em lenços ou pedaços de pano que lhes dão os europeus. (…) Os rapazes têm por hábito furar o beiço inferior logo na infância, e usam no buraco um osso bem polido, alvo como marfim, feito à semelhança de uma carrapeta; e como a parte pontuda sai para fora uma polegada mais ou menos e fica o osso detido por um ressalto entre o beiço e a gengiva, eles o tiram e colocam como querem. Mas só usam esse osso branco na adolescência; quando adultos, curumim-açu (isto é, menino grande) usam no furo do beiço uma pedra verde, espécie da falsa esmeralda, do tamanho de uma moeda do lado de fora e do lado de dentro presa por uma parte mais larga. (…) Quando retiram a pedra do beiço e por divertimento enfiam a língua pela fenda, apresentam como que duas bocas, o que, como é de imaginar, os deforme horrivelmente”.
PINTURAS NO CORPO
“Quanto ao nariz, em vez de fazerem como as nossas parteiras que por ocasião do nascimento das crianças aperta-lhes as ventas com os dedos a fim de tornar-lhes o nariz afilado, os nossos americanos o esmagam com o dedo polegar logo ao saírem os filhos do ventre materno, pois a formosura se mede entre eles pela chateza do nariz. (…) Além disso, os nossos brasileiros pintam muitas vezes o corpo com desenhos de diversas cores e escurecem tanto as coxas e pernas com o suco de jenipapo que ao vê-los de longe pode-se imaginar estarem vestidos com calças de padre.
CRIANDO GALINHAS
(…) Criam os nossos americanos grande quantidade de galinhas comuns, cuja raça foi introduzida pelos portugueses. Depenam as brancas e com instrumentos de ferro picam bem miúdo o frouxel (penas macias) e as penas pequenas; depois fervem e tingem de vermelho com pau-brasil e esfregando o corpo com certa resina apropriada grudam-nos em cima, ficando assim vermelhos e emplumados como pombos recém-nascidos.
CHOCALHOS NO PÉ
(…) Para dançar, beber e cauinar, o que constitui sua ocupação ordinária, procuram algo que os anime, além do canto com que em geral acompanham as danças; para isso colhem certo fruto do tamanho da castanha-d’água e com ela parecido. Depois de secá-lo, tiram-lhe os caroços e colocam no lugar algumas pedrinhas; amarram-nos então aos tornozelos, pois assim dispostos fazem tanto barulho quanto os guizos dos europeus, dos quais aliás de mostram muito cobiçosos.
ESTÉTICA DAS MULHERES
(…) (As mulheres) diferem também dos homens pelo fato de não furarem os lábios nem as faces, não usando, por conseguinte, pedras no rosto. Mas furam de um modo horrível as orelhas para nelas colocarem arrecadas (brincos ou argolas) e quando as retiram podem facilmente meter os dedos nos buracos. (…) Quanto ao rosto, eis como o embelezam. Com um pequeno pincel traçam uma roda no centro da face e a prolongam em espiral, azul, amarela ou verde, mosqueando e sarapintando o rosto inteiro. Também pintam as sobrancelhas e pálpebras como o fazem, ao que se diz, as mulheres impudicas de França”.
PRÓXIMA EDIÇÃO 289 – Abril de 2018 – JEAN DE LÉRY – Parte 4
O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro: “Mas o que mais nos maravilha nessas brasileiras era o fato de que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os homens, nem as cobrirem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem, embora muitas vezes lhes déssemos vestidos de chita e camisas”.