Reino Unido

Os ‘detetives’ que tentam desvendar a morte de baleias e golfinhos

24 de junho de 2018

Todos os anos, 600 botos, golfinhos e baleias aparecem mortos no litoral do Reino Unido – e esses investigadores querem saber por quê.

 

 

Todos os anos, 600 botos, golfinhos e baleias aparecem mortos no litoral do Reino Unido (Foto: ZSL)

Todos os anos, 600 botos, golfinhos e baleias aparecem mortos no litoral do Reino Unido (Foto: ZSL)
 
 
 
Em um laboratório no zoológico de Londres, do lado oposto à jaula das girafas, dois investigadores dissecam meticulosa e lentamente o cadáver de um boto.
 
Equipes de resgate haviam recuperado o animal encalhado em uma praia em Somerset, no sul da Inglaterra, uma semana antes. Seu corpo apresentava cortes profundos – provavelmente resultado da hélice de um barco, acreditavam.
 
Mas os investigadores Rob Deaville e Matt Perkins não têm tanta certeza. Nas próximas duas horas, eles vão tentar descobrir a causa da morte desse boto. Também vão procurar pistas para um quebra-cabeça muito maior, que envolve toda a vida marinha, respondendo a perguntas como: qual é o estado de nossos oceanos? Quais são as maiores ameaças? E o que nós, como humanos, podemos fazer para ajudar?
 
 
 
Principal causa da morte de mamíferos marinhos no Reino Unido é captura acidental (Foto: GETTY IMAGES)
 
Principal causa da morte de mamíferos marinhos no Reino Unido é captura acidental (Foto: GETTY IMAGES)
 
 
 
Deaville e Perkins conduzem necropsias em mais de 100 botos, golfinhos e baleias por ano para a Sociedade Zoológica de Londres (ZSL, na sigla em inglês). O trabalho deles desmascarou ameaças surpreendentes, desde produtos químicos proibidos há muito tempo que ainda estavam presentes na água até o impacto devastador das redes de pesca.
 
Mas também revelou boas notícias, como o poder da mudança de políticas ambientais e o retorno de espécies ameaçadas de extinção a seus locais de origem.
 
 
"Usamos o cadáver de um animal em uma praia para lançar luz sobre sua vida, não apenas sobre sua morte", diz Deaville, que lidera o Programa de Investigação de Cetáceos do Reino Unido (CSIP na sigla em inglês) na ZSL.
 
Os cetáceos são golfinhos, botos e baleias, e as águas do Reino Unido abrigam uma variedade incrível deles. Cerca de um quarto das espécies conhecidas do mundo foi encontrada ali, de baleias-jubarte do tamanho de ônibus a golfinhos-nariz-de-garrafa, elegantes e saltitantes.
 
 
Estômago forte
 
Cerca de 600 cetáceos são encontrados mortos nas praias do Reino Unido todos os anos. Os cientistas da CSIP examinaram sistematicamente 4 mil encalhes desde 1990, mais recentemente passando a analisar grandes tubarões em sua missão de aprofundar nossa compreensão da vida marinha.
 
No laboratório, cercado por frascos intrigantes, Deaville e Perkins observam mais de perto as feridas desse boto em particular. As ferramentas que usam são básicas – um bisturi, uma pinça, um par de tesouras de jardinagem – mas, tendo visto centenas de corpos, rapidamente levantam uma suposição de como o boto morreu.
 
As lesões são muito superficiais para terem sido causadas pela hélice de um barco; a ação das gaivotas provavelmente é a culpada. Deaville corta suavemente uma camada de pele e gordura para ser testada posteriormente quanto à presença de substâncias químicas. Um cheiro podre invade o ar.
 
Agora, entendo por que me perguntaram antes da necropsia se tinha estômago forte e fui alertada de que algumas pessoas já desmaiaram.
 
 
"À medida que avançarmos, você verá muitas semelhanças entre nós e eles, porque eles são mamíferos", diz Deaville ao levantar o fígado roxo do boto. "Mas também verá as diferenças", ressalva.
 
 
As características mais obviamente familiares são os olhos do boto. Eles são parecidos com os dos cães e têm aparência amigável, não são planos e vítreos como os dos peixes.
 
 
Mas logo surgem traços mais curiosos. Os botos têm múltiplos estômagos, como as vacas, e se assemelham a elas. Eles não têm dois rins grandes, mas centenas de rins pequenos.
 
Suas glândulas suprarrenais tendem a ser grandes, possivelmente porque a vida de um boto é bastante estressante. Eles são menores do que os golfinhos e as baleias e enfrentam muitos predadores, incluindo focas, que podem puxá-los para baixo por suas caudas e afogá-los.
 
Além dessas ameaças naturais, há aquelas criadas pelo homem. A principal causa da morte de mamíferos marinhos no Reino Unido é a captura acidental – ou seja, quando o animal fica preso em redes e linhas de pesca. Eles acabam sufocados e frequentemente sofrem lesões mortais, perdendo nadadeiras ou quebrando ossos enquanto tentam se soltar.
 
"É uma maneira muito desagradável de morrer", diz Sarah Dolman, gerente da Whale and Dolphin Conservation, uma ONG que atua em defesa dos cetáceos.
 
Chamo Dolman depois da necropsia para entender melhor a diferença sobre o choque entre nosso apetite por peixe e a luta dos cetáceos pela sobrevivência.
 
 
O perigo da captura acidental
 
Tanto Dolman quanto Deaville são rápidos em apontar que nenhum pescador quer fisgar um golfinho, pois os golfinhos são uma espécie protegida junto com baleias e botos.
 
Na verdade, um relatório de 2017 encomendado pelo governo britânico mostra que os pescadores vêm, em sua maioria, obedecendo às regulamentações da União Europeia para reduzir as capturas acidentais. Isso inclui o uso de dispositivos acústicos de dissuasão (pingers), que emitem um som que afasta os botos.
 
Mas, mesmo com essas medidas, estima-se que mais de 1 mil botos morreram presos em redes em toda a costa do Reino Unido somente em 2016.
 
Uma das dificuldades em reduzir as capturas acidentais é a surpreendente diversidade marinha do Reino Unido. A variedade de espécies diferentes no país – não apenas golfinhos e baleias, mas também aves marinhas – e muitos tipos diferentes de formas de pesca dificultam recorrer a uma solução única.
 
 
Na Escócia, por exemplo, cerca de metade das baleias-de-minke que aparecem mortas no litoral ficam presas nas redes de pesca usadas para a captura de lagostas, lagostins ou caranguejos. Baleias-jubarte já foram vistas arrastando redes de pesca pelo mar. Em toda a costa sul da Inglaterra, centenas de golfinhos comuns são capturados em redes de pesca todos os anos.
 
Apesar de todos os desafios, Dolman diz ter esperanças. "A captura acidental não é um problema fácil de resolver, mas é solucionável". Ela acredita que a estratégia do Reino Unido para reduzir as capturas acidentais pode gerar bons resultados nos próximos anos.
 
 
"Acho que estamos num bom momento no Reino Unido", diz ela. "Essa questão está no topo da agenda política e há muito apoio público."
 
 
O boto que estava sendo analisado no laboratório não morreu preso a uma rede. Cerca de uma hora depois da investigação, Deaville dissecou seu fígado, pulmões, estômago e ovários, chegando à conclusão de que se tratava de uma fêmea jovem e bastante subnutrida. Ele encontrou parasitas, alguns abcessos e uma úlcera de estômago.
 
Deaville suspeita que ela tenha sofrido uma infecção que a deixou fraca demais para caçar. Outra suposição é de que ela não tenha encontrado comida suficiente e, por seu estado enfraquecido, tenha contraído uma infecção.
 
 
Extinção de baleias orcas
 
A causa exata da morte é muitas vezes difícil de estabelecer, mas mesmo uma necropsia ligeiramente inconclusiva pode produzir resultados fascinantes.
 
Talvez a descoberta mais surpreendente tenha sido um tipo de retardatores de chamas altamente tóxicos conhecidos como bifenilos policlorados, ou PCBs, em baleias, golfinhos e botos mortos. Proibidos na década de 1980, os PCBs ainda chegam ao mar a partir de aterros sanitários.
 
Essas substâncias vêm sendo associadas à infertilidade em mamíferos marinhos e, acredita-se, estão levando à extinção o último grupo de baleias orcas da Escócia: existem, hoje, apenas oito exemplares desse animal. No ano passado, o cadáver de uma delas, apelidada de Lulu, foi descrito como "um dos animais mais contaminados do planeta" em relação à presença de PCBs.
 
 
"É uma situação muito triste", diz Dolman. "Esses animais não estão se reproduzindo e caminham, provavelmente, rumo à extinção".
Por outro lado, o trabalho de Deaville mostrou que a mudança de políticas pode ser consideravelmente efetiva. Um estudo que analisou a gordura de botos descobriu que os níveis de PBDE, outro retardador de chama tóxico, caíram desde que o composto foi eliminado nos anos 2000. E uma moratória à caça de baleias provocou um aumento no número de baleias-jubarte.
 
A necropsia está chegando ao fim. Por último, inspecionamos o interior da cabeça do golfinho, incluindo as partes que facilitam a chamada ecolocalização – a famosa habilidade dos cetáceos de caçar guiados apenas pelo som. Os restos são jogados em sacos plásticos amarelos para serem incinerados mais tarde.
 
Saio do laboratório e volto para o mundo exterior, passando por árvores cobertas de flores e grupos de crianças em idade escolar, enquanto penso no drama que se desenrola ao longo de nossas praias todos os dias – invisível e despercebido, até ser revelado por um cadáver encalhado.