Naturalistas Viajantes

Jean de Léry – Parte 8

2 de agosto de 2018

As guerras tribais e como tratam os prisioneiros

 

 

POR QUE OS ÍNDIOS GUERREIAM?
NÃO É PARA CONQUISTAR PAÍSES OU TERRAS
 
Jean de Léry (1536-1613) aquele que entrou de gaiato no navio, continua suas histórias sobre o Brasil de 1550. Léry – só para relembrar – acreditou na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon e embarcou em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 8, Jean de Léry explica que motivos levam os selvagens a guerrear já que não pretendem terras, nem enriquecerem e muito menos receber resgate dos prisioneiros.
 
 “Os selvagens se guerreiam não para conquistar países e terras uns aos outros, porquanto sobejam terras para todos; não pretendem tampouco enriquecer-se com os despojos dos vencidos ou o resgate dos prisioneiros. Nada disso os move. Confessam eles próprios serem impelidos por outro motivo; o de vingar pais e amigos presos e comidos, no passado. (…) E são tão encarniçados uns contra os outros que quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
 
Léry e seus companheiros participam de uma guerra entre duas tribos rivais: “Confessarei que nos limitamos a assistir ao combate da retaguarda, apreciando as peripécias da luta. Devo acrescentar que embora tenha visto muitas vezes regimentos de infantaria e cavalaria nos países europeus, com seus elmos dourados e suas armas reluzentes, nunca espetáculo de combate me deu tanto prazer aos olhos. Mas além da diversão de vê-los saltar, assobiar e manobrar com destreza para todos os lados, causava encanto o espetáculo de tantas flechas emplumadas de vermelho, azul, verde e outras cores, brilhando aos raios do sol; e não era menos agradável ver os adornos feitos dessas penas naturais com que se vestiam os selvagens. (…) Nós, franceses, nada mais fizemos do que empunhar as nossas espadas e dar alguns tiros de pistola para o ar para estimular nossa gente, mas nada podia causar maior prazer aos nossos aliados do que irmos à guerra com eles e isso nos engrandeceu perante os velhos das aldeias que frequentávamos”.
 
 
INSATISFAÇÃO COM VILLEGAIGNON
 
Os indígenas têm lá suas razões para estarem insatisfeitos com Villegaignon. Ao resgatar uma mulher com seu filho de dois anos das mãos dos tupinambás, Léry escuta a lamúria do vendedor: “Não sei o que vai acontecer no futuro. Depois que pai Colás chegou aqui já não comemos nem a metade de nossos prisioneiros”.
 
“(…) quatro meses após a nossa chegada a esse país, escolhemos entre os quarenta ou cinqüenta escravos comprados aos selvagens e empregados nos trabalhos do forte dez meninos que foram enviados para a França ao rei Henrique II, então reinante”.
 
 
Dentre as curiosidades recolhidas por Léry sobre o tratamento dado pelos indígenas aos prisioneiros de guerra, algumas demonstram bem o que pensam ser a finalidade de suas vidas: “Logo depois de chegarem (os prisioneiros) são não somente bem alimentados, mas ainda lhes concedem mulheres (mas não maridos às prisioneiras, não hesitando os vencedores em oferecer a própria filha ou irmã em casamento. Tratam bem o prisioneiro e satisfazem-lhe todas as necessidades. Não marcam antecipadamente o dia do sacrifício; se os reconhecem como bons caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das roças ou apanhar ostras conservam-nos durante certo tempo; depois de os engordarem matam-nos afinal e os devoram em obediência ao seguinte cerimonial. Todas as aldeias circunvizinhas são avisadas do dia da execução e breve começam a chegar de todos os lados homens, mulheres e meninos. Dançam então e cauínam. O próprio prisioneiro, apesar de não ignorar que a assembleia se reúne para se sacrifício dentro de poucas horas, longe de mostrar-se pesaroso enfeita-se todo de penas e salta e bebe como um dos mais alegres convivas. Depois de ter comido e cantado durante seis ou sete horas com os outros, é ele agarrado por dois ou três dos personagens mais importantes do bando e sem que oponha a menor resistência, é amarrado pela cintura com cordas de algodão ou de fibra de uma árvore a que chamam ‘imbira’, semelhante à nossa tília. Deixam-lhe os braços livres e o fazem passear assim pela aldeia, em procissão, durante alguns momentos. Não se imagina porém que o prisioneiro com isso se deprima. Ao contrário, com audácia e incrível segurança jacta-se das suas proezas passadas e diz aos que o mantêm amarrado: 
 
– ‘Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores’. 
 
Cada vez mais feroz volta-se para ambos os lados exclamando para uns e outros: 
 
– ‘Comi teu pai, matei e moqueei a teus irmãos; comi tantos homens e mulheres, filhos de vós outros tupinambás, a que capturei na guerra, que nem posso dizer-lhes os nomes; e ficai certos de que para vingar a minha morte os maracajás da nação a que pertenço hão de comer ainda tantos de vós quantos possam agarrar’. 
 
Em seguida, após ter estado assim exposto às vistas de todos, os dois selvagens que o conservam amarrado afastam-se dele umas três braças de ambos os lados e esticam fortemente as cordas de modo a que o prisioneiro fique imobilizado. Trazem-lhe então pedras e cacos de potes, e os dois guardas, receosos de serem feridos, protegem-se com rodelas de couro de tapir e dizem-lhe: 
– ‘Vinga-te, antes de morreres’. 
 
 
Começa o prisioneiro a atirar projéteis com todas as usas forças contra os que ali se reúnem em torno dele, algumas vezes sem número de três a quatro mil. E é desnecessário dizer que não escolhe suas vítimas. (…) Esgotadas as provisões de pedras e cacos e de tudo que o prisioneiro pode apanhar junto de si, o guerreiro designado para dar o golpe, e enfeitado com lindas plumas, barrete e outros adornos; e armado de um enorme tacape, aproxima-se do prisioneiro e lhe dirige as seguintes palavras: 
 
– ‘Não és tu da nação dos maracajás, que é nossa inimiga? Não tens morto e devorado aos nossos pais e amigos?’ 
 
O prisioneiro, mais altivo do que nunca, responde no seu idioma: 
 
– ‘Sim, sou muito valente e realmente matei e comi muitos’. 
 
Em seguida, para excitar ainda mais a indignação do inimigo, leva as mãos à cabeça e exclama: 
 
– ‘Eu não estou a fingir, fui com efeito valente e assaltei e venci os vossos pais e os comi’. 
 
E assim continua até que seu adversário, prestes a matá-lo, exclama:
 
– ‘Agora estás em nosso poder e serás morto por mim e moqueado e devorado por todos’.
 
 Mas tão resoluta quanto Atílio Régulo ao morrer pela República Romana, a vítima ainda responde: 
 
– ‘Meus parentes me vingarão’. 
 
 
O TACAPE MORTAL
 
(…) O selvagem encarregado da execução levanta então o tacape com ambas as mãos e desfecha tal pancada na cabeça do pobre prisioneiro que ele cai redondamente morto sem sequer mover braço ou perna. (…) Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno. 
 
Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torná-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torná-los mais valentes. (…) 
 
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem os dedos e dizem: ‘iguatu’, o que quer dizer ‘está muito bom. 
 
(…) Quando a carne do prisioneiro, ou dos prisioneiros, pois às vezes matam dois ou três num só dia, está bem cozida, todos os que assistem ao fúnebre sacrifício se reúnem em torno dos moquéns, contemplando-os com ferozes esgares; e por maior que seja o número de convidados, nenhum dali sai sem o seu pedaço.
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO 294 – Setembro de 2018 – JEAN DE LÉRY – Parte 9
A festa canibalesca continua. Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice. (…) Move-os a vingança, salvo no que diz respeito às velhas, como já observei. Por isso, para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até o nariz e a cabeça, com exceção, porém dos miolos, em que não tocam”.