A Cruz de Crescêncio

7 de janeiro de 2019

Diamantes, injustiças e histórias de traição

 

 

Serra do Espinhaço. Cabeceiras do rio Jequitinhonha. A Chapada do Couto é considerada a caixa d’água do Jequitinhonha. Nascem na Chapada o braço Norte do rio e seus principais tributários. O Preto e o Araçuaí são decididos em seus cursos rumo norte, enquanto o Jequitinhonha Preto ou do Soberbo desguia para Sudoeste, recebe o braço que vem do Serro na Ponte do Acaba-Mundo e, depois de um devorteio de muitas léguas, intercepta o Araçuaí, já reforçado pelas águas do rio Preto. Suas águas seguem, mas seu nome permanece no município de São Gonçalo do Rio Preto e no Parque Estadual, que ocupa quase a metade do município. É região rica em diamantes, injustiças e histórias de traição. Os arquivos que transmitem oralmente essas histórias se calam apagados pelo tempo. Garimpá-las é como faiscar diamantes em lavras abandonadas.
 
 
A CRUZ NA PORTARIA DO PARQUE DO RIO PRETO
 
A pouco mais de um quilômetro da portaria do Parque do Rio Preto, uma cruz de madeira carcomida sinaliza o palco natural de um dos atos do confronto entre dois personagens envolvidos em trama de amor e cobiça. Os moradores das comunidades próximas conhecem a cruz e a lapa como de Crescêncio. O senhor José Rocha, morador da Comunidade do Alecrim e ex-funcionário do Parque, resgata a origem desse topônimo: A CRUZ DE CRESCÊNCIO.
 
Na primeira metade do século passado, o declínio da atividade do garimpo redirecionou para o Paraná o sonho do Eldorado. Crescêncio era noivo no Rio Preto e percebeu nessa alternativa um atalho para sua felicidade. A viagem era demorada e Crescêncio logo ajeitou a malota, a matula e sua mula. Não perdeu tempo em colocar na prática seu plano casamenteiro.
 
 
O INTERESSE DESINTERESSADO
 
Nas suas cartas, contava suas peripécias econômicas e sonhava o futuro com a noiva. 
 
Mas, o capeta quando não vem, manda o secretário! Zezé, o emissário do cão, chegou no Rio Preto, conheceu a noiva de Crescêncio e logo se interessou em botar areia num arranjo tão bonito. Fez-se amigo da moçoila sonhadora e fingiu interesse desinteressado.
 
Através da amizade insidiosa, sabia das evoluções econômicas e dos planos do ingênuo rival. Um dia chegou a carta portadora da notícia agourenta: “Vou voltar.” Com o pé de meia devidamente fornido, Crescêncio incitou viagem de volta, para retomar a vida de onde a havia sustado.
 
Era muita alegria para coração pouco. Alegria extravasada com o amigo Zezé, que se desassossegou. Percebeu que sem sua interferência, as tramas do destino seguiriam seu fluxo. Sabia o quê fazer, mas não sabia como. Postou-se no Mendanha. Crescêncio não tardou em aparecer vindo dos lados de Diamantina.
 
– Muito prazer! Crescêncio? Sou o Zé Maria. Venho das bandas de Curimataí. Passei ontem no Inhaí e sigo amanhã para o Rio Preto. Ah! Você também vai pra lá? Entonces podemos seguir juntos!
 
 
O POUSO NA LAPA FATÍDICA
 
Na manhã seguinte seguiram viagem. A cabeça de Zezé fervilhava na busca de como dar cabo à concorrência. Depois de um estirão de cinco léguas, Zezé sugeriu pouso na lapa fatídica.
 
– Amanhã chegaremos no Rio Preto de dia e descansados.
 
Crescêncio concordou. Era como protelar o último gole de uma bebida saborosa. Prepararam-se para o pernoite. Durante a boia, o próprio Crescêncio criou a oportunidade ansiada.
 
– Medo de viajar sozinho? Ah, não! Estou sempre acompanhado de um revorvinho calibre 22. Pois não, é claro que você pode ver!
 
E entregou a arma ao Zezé, que sem perda de tempo, aproveitou a oportunidade recebida de mão beijada. Experimentou a arma no próprio Crescêncio, que nem tempo teve de se decepcionar. Zezé descartou-se do corpo, assumiu a posse dos bens e sumiu no cerrado. Reapareceu no Rio Preto e, sem pressa, deu novo rumo ao barco do destino.
 
A inquietação da donzela era condimentada a princípio, por comentários sutis e desanimadores.
 
– A demorança de Crescêncio é para preocupar. Será se ele desistiu?
 
O desalento da espera recebia adjutórios pungentes e cada vez mais definitivos. 
 
– Deve ter se engraçado por lá! Aposto que formou até família.
 
O tempo encarregou-se de sedimentar as esperanças da pretendente. Zezé lançou a cartada final e a ex-futura senhora Crescêncio aquiesceu resignadamente.
 
Para Zezé, o empecilho havia sido eliminado. Crescêncio estava morto e sua voz calara-se para sempre. Nunca poderia atrapalhar a conclusão de seu plano. Ou será que poderia?
 
 
O CASAMENTO MARCADO
 
Marcaram casamento. Zezé foi para seu couto e escolheu dentre os pertences de Crescêncio a roupa que lhe pareceu mais ajeitada. Calça de linho e camisa enfeitada com uns arabescos que achou lindos. E apresentou-se para o casório, na Igreja Matriz dedicada a São Gonçalo.
 
Zezé ignorava que Crescêncio era caprichoso e pagara para bordarem suas roupas. Ignorava também a arte da leitura. Os arabescos eram o nome de Crescêncio, delicadamente bordado.  Ao susto dos convidados, seguiu-se a chegada da polícia. Réu confesso e crime desvendado, Zezé ainda levou os policiais ao local onde abandonara o corpo de sua vítima. 
 
Os animais haviam completado o estrago que iniciara!