Naturalistas Viajantes

Ritual Canibalesco

7 de janeiro de 2019

Experiência estarrecedora para Jean de Léry (parte 13)

 

 

O relato de Jéan de Léry é impressionante. Estamos na Parte 13 dessa viagem espetacular sobre o início da História do Brasil. Jean de Léry (1536-1613) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 13, Jean de Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à Ilha de Villegaignon, quando encontrou os índios dançando e bebendo cauim em ‘homenagem’ a um prisioneiro morto seis horas antes e cujos restos ainda estavam no moquém. O intérprete de Léry foi participar da festa e o francês ficou totalmente perdido naquele ritual canibalesco.

 

 

 

RESUMO GERAL

Estamos na Parte 13. Acho que o leitor gostaria de ter um resumo das 12 partes anteriores, se bem que pode buscar no site Folha a fantástica história de Jean de Léry e de vários outros Naturalistas Viajantes.  O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.
 
PARTE 1 – ABERTURA (Edição 285 – Janeiro de 2018) – Lévi-Strauss explica: “A leitura de Jean Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
 
PARTE 2 (Edição 286 – Fevereiro de 2018) – Jean Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo.
 
PARTE 3 (Edição 287 – Março de 2018) – Léry observa e anota o que permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta. 
 
PARTE 4 (Edição 289 – Abril de 2018) – O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro:
 
PARTE 5 (Edição 290 – Maio de 2018) – Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres que preparam, mastigando as raízes ou o milho.
 
PARTE 6 (Edição 291 – Junho de 2018) – Jean de Léry conta que “as abelhas da América não se parecem com as europeias. Antes se assemelham às pequenas moscas pretas que temos no tempo das uvas. 
 
PARTE 7 (Edição 292 – Julho de 2018) VOLÚPIA DOS EUROPEUS PELO PAU-BRASIL – Os tupinambás admiram porque os estrangeiros se dão ao trabalho de vir buscar o seu ‘arabutã’ (pau-brasil).
 
PARTE 8 (Edição 293 – Agosto de 2018) – AS GUERRAS TRIBAIS E COMO TRATAM OS PRISIONEIROS – “Quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
 
PARTE 9 (Edição 294 – Setembro de 2018) – A festa canibalesca entre os Tupinambás. Move-os a vingança. Para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro.
 
PARTE 10 (EDIÇÃO 295 – Outubro de 2018) SOBRE O CASAMENTO E A POLIGAMIA ENTRE OS INDÍGENAS. Como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa e como acontece a cerimônia matrimonial.
 
PARTE 11 (EDIÇÃO 296 – Novembro de 2018) COMO RESOLVER DESENTENDIMENTOS. Entre os índios é vida por vida, olho por olho e dente por dente.
 
PARTE 12 (EDIÇÃO 297 – Dezembro de 2018) Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à ilha de Villegaignon.
 
PARTE 13 (EDIÇÃO 298 – Janeiro de 2019) Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora sobre a morte de um prisioneiro e o canibalismo.
 

 

 

A TERRÍVEL EXPERIÊNCIA

Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora. O aperto que experimenta por desconhecer a língua e os costumes dos nativos é partilhado com o leitor: “Nesse mesmo dia eu e o intérprete tocamos para diante e fomos dormir na segunda aldeia chamada ‘Eyramiri’ e que os nossos denominam ‘Goset’ por causa do trugimão aí residente. Ao chegarmos, pouco antes do pôr do sol, encontramos os selvagens dançando e bebendo cauim em homenagem a um prisioneiro morto seis horas antes e cujos restos ainda pudemos ver no moquém. Naturalmente fiquei estarrecido diante de semelhante tragédia, mas isso não foi nada em comparação com o medo pelo que logo depois passei. Entramos numa casa da aldeia onde, de acordo com o costume da terra nos sentamos cada qual em sua rede. Logo depois puseram-se as mulheres a chorar enquanto o dono da casa nos dava as boas-vindas. Entrementes o intérprete a quem tais costumes não eram estranhos e que apreciava cauinar com os selvagens retirou-se para o grupo dos dançarinos e me deixou ali em companhia de algumas pessoas sem nenhuma instrução especial. Como eu estava cansado, depois de ter comido alguma farinha de raízes e outros mantimentos, inclinei-me e deitei na rede em que estava sentado. 
 
 
JEAN DE LÉRY NÃO CONSEGUE DORMIR
 
Com a bulha que faziam os selvagens dançando e assobiando e festejando a matança do prisioneiro não me foi possível dormir; eis que de repente um dos convivas traz-me na mão um pé assado e moqueado da vítima e se aproxima de mim perguntando se desejava comer, o que vim a saber depois pois naquela época não o entendera. Isso causou-me tal pavor que parece desnecessário dizer que perdi toda a vontade de dormir. Pensei com efeito que a apresentação da carne humana pelo selvagem significava uma ameaça e que se pretendia com isso dar-me a entender que muito breve seria eu também preparado para o festim; e como uma suspeita acarreta outra, imaginei que o intérprete me traíra deliberadamente entregando-me a esses bárbaros. Assim, se alguma abertura houvesse por onde eu pudesse fugir, teria escapulido. Vendo-me, porém, cercado de todos os lados por indivíduos cujas intenções eu ignorava (embora não me quisessem mal algum) acreditava que seria realmente comido e por isso rezei a noite inteira com todo o fervor do coração. 
 
 
LÉRY APAVORADA QUERIA IR EMBORA
 
Coloque-se o leitor em meu lugar e avaliará sem dificuldades tudo o que padeci nessa noite. Ao amanhecer, o trugimão que passara a noite na patuscada com os selvagens, veio ter comigo e vendo-me tão pálido e desfigurado e mesmo febril perguntou se me achava incomodado e se não descansara bem; respondi encolerizado que não pregara o olho e que ele era um homem mau, pois me deixara no meio de gente que eu não entendia; e ainda muito assustado pedi-lhe para sairmos dali sem demora. Disse-me então o intérprete que não tivesse medo, pois os selvagens nada tinham contra nós, e contou-lhes o que me passara pela cabeça. E os índios que, satisfeitos com a minha vinda e querendo agradar-me não haviam arredado o pé, declararam que não haviam percebido o meu medo, mas lastimavam o que me sucedera. E como são galhofeiros, desataram a rir de minhas atribulações”.
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO 299 – Fevereiro de 2019 – Parte 14
Jean de Léry estava estarrecido com tudo. A maneira de saudarem quem os visita é detalhada jornalisticamente: “Apenas chega o viajante a casa do mussucá a quem escolheu para hospedeiro, senta-se numa rede e permanece algum tempo sem dizer palavra. É costume escolher o visitante um amigo em cada aldeia e para a sua casa deve dirigir-se sob pena de descontentá-lo. Em seguida reúnem-se as mulheres em torno da rede e acocoradas no chão põem as mãos nos olhos e pranteiam as boas-vindas ao hóspede dizendo mil coisas em seu louvor como por exemplo: ‘Tiveste tanto trabalho em vir ver-nos. És bom. És valente’. Se o estrangeiro é francês ou europeu, acrescentam: ‘Trouxestes coisas muito bonitas que não temos em nossa terra’. Pra responder deve o recém-chegado mostrar-se choroso também.