Naturalistas Viajantes

Ritual das Saudações

4 de fevereiro de 2019

Como os índios dão boas-vindas aos hóspedes (Parte 14)

 

 

É emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1556, as terras do Rio de Janeiro. Jean de Léry (1536-1613) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 14, Jean de Léry descreve jornalisticamente o costume dos Tupinambás para dar as boas-vindas aos hóspedes. Um ritual de profundas mesuras.
 
 
ANTES UM RESUMO GERAL DAS PARTES ANTERIORES
 
Estamos na Parte 14. Acho que o leitor gostaria de ter um resumo das 12 partes anteriores, se bem que pode buscar no site Folha a fantástica história de Jean de Léry e de vários outros Naturalistas Viajantes.  O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.
 
PARTE 1 – ABERTURA (Edição 285 – Janeiro de 2018) – Lévi-Strauss explica: “A leitura de Jean Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
 
PARTE 2 (Edição 286 – Fevereiro de 2018) – Jean Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo.
 
PARTE 3 (Edição 287 – Março de 2018) – Léry observa e anota o que permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta. 
 
PARTE 4 (Edição 289 – Abril de 2018) – O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro:
 
PARTE 5 (Edição 290 – Maio de 2018) – Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres que preparam, mastigando as raízes ou o milho.
 
PARTE 6 (Edição 291 – Junho de 2018) – Jean de Léry conta que “as abelhas da América não se parecem com as europeias. Antes se assemelham às pequenas moscas pretas que temos no tempo das uvas. 
 
PARTE 7 (Edição 292 – Julho de 2018) VOLÚPIA DOS EUROPEUS PELO PAU-BRASIL – Os tupinambás admiram porque os estrangeiros se dão ao trabalho de vir buscar o seu ‘arabutã’ (pau-brasil).
 
PARTE 8 (Edição 293 – Agosto de 2018) – AS GUERRAS TRIBAIS E COMO TRATAM OS PRISIONEIROS – “Quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
 
PARTE 9 (Edição 294 – Setembro de 2018) – A festa canibalesca entre os Tupinambás. Move-os a vingança. Para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro.
 
PARTE 10 (EDIÇÃO 295 – Outubro de 2018) SOBRE O CASAMENTO E A POLIGAMIA ENTRE OS INDÍGENAS. Como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa e como acontece a cerimônia matrimonial.
 
PARTE 11 (EDIÇÃO 296 – Novembro de 2018) COMO RESOLVER DESENTENDIMENTOS. Entre os índios é vida por vida, olho por olho e dente por dente.
 
PARTE 12 (EDIÇÃO 297 – Dezembro de 2018) Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à ilha de Villegaignon.
 
PARTE 13 (EDIÇÃO 298 – Janeiro de 2019) Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora sobre a morte de um prisioneiro e o canibalismo.
 
PARTE 14 (EDIÇÃO 2998 – Fevereiro de 2019) Jean de Léry é recebido pelos índios e descreve jornalisticamente como os Tupinambás recebem seus hóspedes.
 
 
 
 
 
SAUDAÇÕES AOS HÓSPEDES
 
A maneira de saudarem quem os visita é detalhada jornalisticamente: “Apenas chega o viajante a casa do mussucá a quem escolheu para hospedeiro, senta-se numa rede e permanece algum tempo sem dizer palavra. É costume escolher o visitante um amigo em cada aldeia e para a sua casa deve dirigir-se sob pena de descontentá-lo. Em seguida reúnem-se as mulheres em torno da rede e acocoradas no chão põem as mãos nos olhos e pranteiam as boas-vindas ao hóspede dizendo mil coisas em seu louvor como por exemplo:
 ‘Tiveste tanto trabalho em vir ver-nos. És bom. És valente’. 
 
Se o estrangeiro é francês ou europeu, acrescentam: 
 
‘Trouxestes coisas muito bonitas que não temos em nossa terra’.
 
 Pra responder deve o recém-chegado mostrar-se choroso também; se não quer fazê-lo de verdade deve pelo menos fingi-lo com profundos suspiros como me foi dado observar de alguns de nossa nação que com muito jeito imitavam a lamúria dessas mulheres. 
 
Terminada a primeira saudação festiva das mulheres americanas, o ‘mussucá’ que durante todo esse tempo permaneceu sossegado num canto da casa a fazer flechas, dirá sem parecer avistar-nos (costume bem diverso dos nossos, cheios de mesuras, abraços, beijos e apertos de mão): ‘Ereiupe’, isto é, ‘vieste, como estás, que desejas,’ etc. A isto se responderá de acordo com o colóquio formulado em língua brasílica e que se encontra no capítulo XX. Depois disso o ‘mussucá’ perguntará se queremos comer. Se respondermos afirmativamente, mandará depressa aprontar e trazer numa bonita vasilha de barro um pouco de farinha que comem, veações, aves, peixes e outros manjares; como, porém os selvagens não têm mesas nem bancos nem cadeiras, servem-no no chão raso. Quanto à bebida, dão-nos cauim que costumam ter preparado.
 
 
 
 
 
 
 
OS FRUTOS DA TERRA
 
Em seguida voltam as mulheres com frutos e objetos da terra, a fim de trocá-los por espelhos, pentes ou miçangas para enfeites de braços. Quando alguém quer dormir na aldeia onde se encontra, o velho manda armar uma bonita rede branca, e, embora não faça frio nessa terra, manda acender três ou quatro fogueiras em torno da rede, já por causa da umidade, já por ser de tradição”.
 
Já me referi ao fogo, a que os selvagens chamam ‘tatá’ e à fumaça denominada ‘tataim’, cabe-me agora dizer que o acendem quando lhes apraz de uma maneira maravilhosa e desconhecida de nós. (…) Em suas caçadas no mato ou em suas pescarias nos lagos e rios, para qualquer lado que se dirijam, ignorando o uso da pedra e do fuzil, carregam por toda parte duas espécies de madeiro, uma tão dura como aquela de que os nossos cozinheiros fabricam espetos e outra tão mole que parece podre. Quando querem fazer fogo pegam de um pau em forma de fuso, preparado com a madeira dura e mais ou menos de um pé de comprimento, e colocam com a ponta no centro de outra peça feita com a madeira mole. Esta peça é deitada no chão ou posta sobre um tronco mais ou menos grosso; em seguida rodam em rapidez o pau pontudo entre as palmas das mãos como se quisessem furar a peça inferior. O rápido e violento movimento imprimido ao fuso desenvolve tal calor que em se colocando ao lado algodão ou folhas secas de árvores, o fogo pega perfeitamente; e asseguro aos leitores que eu mesmo acendi fogo desse modo.
 
 
A RETRIBUIÇÃO DO HÓSPEDE
 
Depois de comer, beber e repousar ou dormir em suas casas, o hóspede bem intencionado deve dar aos homens facas ou tesouras ou pinças de arrancar barba. Às mulheres dará pentes e espelhos, e aos meninos anzóis. 
 
Mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país; e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuem; e com a mesma liberalidade tratam os seus aliados.
 
 
ADMIRAÇÃO PELAS MERCADORIAS
 
Como andávamos sempre com um saco de couro cheio de mercadorias que nos serviam de moeda, ao deixarmos a aldeia demos-lhes facas, tesouras e pinças e às mulheres presenteamos com pentes, braceletes e miçangas e aos meninos com anzóis. Para mostrar o caso que fazem dessas coisas, direi que estando certa vez numa aldeia, o meu ‘mussacá’ pediu-me que lhe mostrasse o que tinha no ‘carameno’, isto é, saco de couro. Despejei tudo numa bonita vasilha de barro que ele mandara trazer. O velho admirou a mercadoria longamente e depois chamou outros selvagens e lhes disse: ‘Considerai, meus amigos, o personagem que tenho em minha casa; com tantas riquezas não lhes parece um grande senhor?’ Não pude deixar de sorrir para um companheiro que estava a meu lado, pois tudo isso que o selvagem tanto apreciava se resumia em cinco ou seis facas encabadas de diversas formas, outros tantos pentes, dois ou três espelhos grandes e mais algumas miudezas que em Paris não valeriam grande coisa. Como eles prezam sobretudo às pessoas liberais e como eu desejava crescer ainda na sua admiração, dei-lhe publicamente a maior e a mais bonita das facas; e ele apreciou tanto o presente quanto em França seria apreciado um trancelim de ouro de cem escudos.
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO 300 – Março de 2019 – Parte 15
Jean de Léry finalilza suas observações sobre os indígenas com a descrição ‘de como tratam os selvagens os seus doentes, dos funerais e sepultura e do modo de chorar os seus defuntos’.
 
 
 
 
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