Naturalistas Viajantes
O Tratamento de Doentes e os Funerais
6 de março de 2019Como os índios choram os seus defuntos (Parte 15)
Jean de Léry (1536-1613) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. É muito interessante e emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1556, as terras do Rio de Janeiro. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 15, Jean de Léry descreve jornalisticamente o costume dos Tupinambás no tratamento que davam aos seus doentes, como realizavam os funerais e como choravam os seus mortos.
ANTES UM RESUMO GERAL DAS PARTES ANTERIORES
Estamos na Parte 15. Acho que o leitor gostaria de ter um resumo das 14 partes anteriores, se bem que pode buscar no site Folha a fantástica história de Jean de Léry e de vários outros Naturalistas Viajantes. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.
PARTE 1 – ABERTURA (Edição 285 – Janeiro de 2018) – Lévi-Strauss explica: “A leitura de Jean de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
PARTE 2 (Edição 286 – Fevereiro de 2018) – Jean de Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo.
PARTE 3 (Edição 287 – Março de 2018) – Léry observa e anota o que permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta.
PARTE 4 (Edição 289 – Abril de 2018) – O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro:
PARTE 5 (Edição 290 – Maio de 2018) – Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres que preparam, mastigando as raízes ou o milho.
PARTE 6 (Edição 291 – Junho de 2018) – Jean de Léry conta que “as abelhas da América não se parecem com as europeias. Antes se assemelham às pequenas moscas pretas que temos no tempo das uvas.
PARTE 7 (Edição 292 – Julho de 2018) VOLÚPIA DOS EUROPEUS PELO PAU-BRASIL – Os tupinambás admiram porque os estrangeiros se dão ao trabalho de vir buscar o seu ‘arabutã’ (pau-brasil).
PARTE 8 (Edição 293 – Agosto de 2018) – AS GUERRAS TRIBAIS E COMO TRATAM OS PRISIONEIROS – “Quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
PARTE 9 (Edição 294 – Setembro de 2018) – A festa canibalesca entre os Tupinambás. Move-os a vingança. Para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro.
PARTE 10 (EDIÇÃO 295 – Outubro de 2018) SOBRE O CASAMENTO E A POLIGAMIA ENTRE OS INDÍGENAS. Como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa e como acontece a cerimônia matrimonial.
PARTE 11 (EDIÇÃO 296 – Novembro de 2018) COMO RESOLVER DESENTENDIMENTOS. Entre os índios é vida por vida, olho por olho e dente por dente.
PARTE 12 (EDIÇÃO 297 – Dezembro de 2018) Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à ilha de Villegaignon.
PARTE 13 (EDIÇÃO 298 – Janeiro de 2019) Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora sobre a morte de um prisioneiro e o canibalismo.
PARTE 14 (EDIÇÃO 299 – Fevereiro de 2019) Jean de Léry é recebido pelos índios e descreve jornalisticamente como os Tupinambás recebem seus hóspedes.
PARTE 15 (EDIÇÃO 300 – Março de 2019) Jean de Léry escreve sobre o tratamento de doentes e como os índios choram os seus defuntos.
OS DOENTES E OS FUNERAIS
Como os índios choram os seus defuntos
Jean de Léry faz suas observações sobre os indígenas com a descrição ‘de como tratam os selvagens os seus doentes, dos funerais e sepultura e do modo de chorar os seus defuntos’.
No último capítulo do livro, Léry narra a verdadeira aventura de sua viagem de volta à França, de fazer sua estadia brasileira parecer um convescote, que é como os portugueses queriam renomear o anglicismo ‘piquenique’.
VILLEGAIGNON: UMA CAIXINHA DE SURPRESA
Depois da permanência de quase dois meses “no sítio denominado Olaria”, Villegaignon, como vice-rei do país, expede licença por escrito ao mestre de um navio francês “em que declarava que nenhuma dificuldade opunha pessoalmente ao nosso embarque. (…) Com isto nos ocultava uma traição; dera com efeito ao mestre uma caixinha embrulhada em pano encerado (por causa do mar) com cartas dirigidas a vários personagens, inclusive um processo em que, sem que soubéssemos, se pedia ao primeiro Juiz de França prender-nos e mandar-nos queimar como hereges. (…) Depois de carregado o ‘Jacques’ com pau-brasil, pimentão, algodão, bugios, saguis, papagaios e outras coisas da terra, que levavam os passageiros, partimos a 4 de janeiro de 1558. (…) Depois de andar vogando por espaço de sete a oito dias, atirados para um e outro lado por esse vento mau que nos prejudicava a marcha, verificou o marinheiro de quarto que entrava água pela popa do navio e conquanto lutassem com ela, fazendo mais de quatro mil zonchaduras (os que frequentam o oceano entendem bem este termo) não puderam esgotá-la nem estancá-la. Cansados de tocar a bomba, desceu o contra-mestre para verificar donde provinha a água e observou que jorrava em vários pontos com violência e com o peso da que havia nos porões o barco já não se governava e aos poucos afundava. É fácil imaginar a que ponto o fato nos apavorou quando fomos despertados e notificados do perigo. Este era tão evidente que, certos do naufrágio e sem esperanças de salvação, muitos já imaginavam morrer afogados. Quis Deus, entretanto, que alguns passageiros, e eu com eles, resolutos em defender a vida se tomassem de coragem e com duas bombas sustentassem o barco até meio-dia, ou seja, durante doze horas. A água entrava no navio com tanta abundância que as bombas não conseguiam esgotá-la e como ela encharcara o pau-brasil, que constituía a carga do navio, corria pelos canais vermelha como sangue de boi. (…) Entrementes o carpinteiro do navio, auxiliado por marinheiros, lutava sob o convés contra as fendas e trabalhava, com toucinho, chumbo, panos e outras coisas para tapar as mais perigosas e conseguiu finalmente quando não tínhamos mais forças para continuar a bombear.
NAVIO VELHO E CARCOMIDO
Mas dizia o carpinteiro, após ter revistado o navio, que este era muito velho e a tal ponto carcomido que não lhe parecia com resistência suficiente para a viagem, sendo ele de opinião que voltássemos ao ponto de partida para tomarmos outro barco ou reconstruirmos o nosso. E tudo isso foi muito debatido. Objetou, porém, o mestre que se regressasse à terra os marinheiros o abandonariam; preferia, portanto, com muito pouco juízo, arriscar a vida a perder o barco com as mercadorias. Disse ainda que se o senhor Du Pont e demais passageiros quisessem regressar à terra lhes daria uma barca, ao que dito senhor Du Pont logo respondeu afirmando estar resolvido a continuar a viagem e aconselhou seus camaradas a fazerem o mesmo. Replicou o mestre que além do perigo da navegação, permaneceríamos no mar muito tempo e talvez não houvesse víveres bastantes para todos. Em vista dessas objeções eu e mais cinco companheiros decidimos voltar à terra dos selvagens, distante apenas nove ou dez léguas, já considerando a possibilidade o naufrágio, já a da fome. Pusemos no bote alguma farinha de mandioca, bebidas e nossas roupas; mas ao nos despedirmos de nossos companheiros, um deles, penalizado com a separação e impelido pela amizade que me devotava, estendeu os braços para a barca e disse: ‘Peço-vos que fiqueis conosco, pois apesar da incerteza em que estamos e aportar em França, há mais esperanças de nos salvarmos do lado do Peru ou de qualquer outra ilha do que das garras de Villegaignon que, como podeis imaginar, nunca vos dará sossego’.
O momento não era para discursos e, atentando para suas observações, deixei na barca parte de minha bagagem e subi apressadamente para o navio, preservando-me assim do perigo previsto com acerto por esse amigo. Quanto aos outros cinco, que tinham por nomes Pierre Bourdon, Jean Bordel, Mathieu Verneuil, André Lafon e Jacques Leballeur, despediram-se tristemente de nós para o Brasil, onde aportaram com grandes dificuldades. Mas Villegaignon mandou matar os três primeiros, por divergências religiosas”.
PRÓXIMA EDIÇÃO 301 – Abril de 2019 – Parte 16.
Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar "heresias protestantes". O jornalista e historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), em sua ‘História do Brasil’ publicada em 1935, recupera parte da história dos religiosos franceses: “Jacques Le Balleur foi poupado, pois era ferreiro. Isto praticamente marcou o fim da colônia francesa, e encerrou a tragédia da Guanabara”.
Miguel Flori Gorgulho – [email protected]