Naturalistas Viajantes

Jean de Léry (parte 17)

29 de abril de 2019

A trágica volta à França

 

 

Jean de Léry (1536-1613) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. É muito interessante e emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1556, as terras do Rio de Janeiro. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 17, Jean de Léry descreve jornalisticamente as peripécias da viagem de volta à França em maio de 1558.

 

 

ANTES UM RESUMO GERAL DAS PARTES ANTERIORES

 

 
Estamos na Parte 17. Acho que o leitor gostaria de ter um resumo das 14 partes anteriores, se bem que pode buscar no site Folha a fantástica história de Jean de Léry e de vários outros Naturalistas Viajantes.  O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.
 
PARTE 1 – ABERTURA (Edição 285 – Janeiro de 2018) – Lévi-Strauss explica: “A leitura de Jean de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
 
PARTE 2 (Edição 286 – Fevereiro de 2018) – Jean de Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo.
 
PARTE 3 (Edição 287 – Março de 2018) – Léry observa e anota o que permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta. 
 
PARTE 4 (Edição 289 – Abril de 2018) – O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro:
 
PARTE 5 (Edição 290 – Maio de 2018) – Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres que preparam, mastigando as raízes ou o milho.
 
PARTE 6 (Edição 291 – Junho de 2018) – Jean de Léry conta que “as abelhas da América não se parecem com as europeias. Antes se assemelham às pequenas moscas pretas que temos no tempo das uvas. 
 
PARTE 7 (Edição 292 – Julho de 2018) VOLÚPIA DOS EUROPEUS PELO PAU-BRASIL – Os tupinambás admiram porque os estrangeiros se dão ao trabalho de vir buscar o seu ‘arabutã’ (pau-brasil).
 
PARTE 8 (Edição 293 – Agosto de 2018) – AS GUERRAS TRIBAIS E COMO TRATAM OS PRISIONEIROS – “Quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
 
PARTE 9 (Edição 294 – Setembro de 2018) – A festa canibalesca entre os Tupinambás. Move-os a vingança. Para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro.
 
PARTE 10 (EDIÇÃO 295 – Outubro de 2018) SOBRE O CASAMENTO E A POLIGAMIA ENTRE OS INDÍGENAS. Como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa e como acontece a cerimônia matrimonial.
 
PARTE 11 (EDIÇÃO 296 – Novembro de 2018) COMO RESOLVER DESENTENDIMENTOS. Entre os índios é vida por vida, olho por olho e dente por dente.
 
PARTE 12 (EDIÇÃO 297 – Dezembro de 2018) Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à ilha de Villegaignon.
 
PARTE 13 (EDIÇÃO 298 – Janeiro de 2019) Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora sobre a morte de um prisioneiro e o canibalismo.
 
PARTE 14 (EDIÇÃO 299 – Fevereiro de 2019) Jean de Léry é recebido pelos índios e descreve jornalisticamente como os Tupinambás recebem seus hóspedes.
 
PARTE 15 (EDIÇÃO 300 – Março de 2019) Jean de Léry escreve sobre o tratamento de doentes e como os índios choram os seus defuntos.
 
PARTE 16 (EDIÇÃO 301 – Abril de 2019 Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte.
 
PARTE 17 (EDIÇÃO 302 – Maio de 2019) Jean de Léry escreve sobre a trágica volta à França.  O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres.
 
 
A TRÁGICA VOLTA DE NAVIO
 
O naturalista Jean de Léry que entrou de gaiato no navio, veio para o Rio de Janeiro e conviveu com os índios Tupinambás, volta, em 1558, para a França.
 
O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão. Quando havia, repartíamos às colheradas esse farelo e com ele fazíamos uma papa preta e amarga como fuligem. Os que ainda tinham bugios e papagaios, a que ensinavam a falar, comeram-nos. E vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.
 
 
MAR AGITADÍSSIMO
 
“Com o mar agitadíssimo, fomos obrigados não somente a ferrar todas as velas e a amarrar o leme, mas ainda, na impossibilidade de dirigir o barco, entregá-lo à discrição das ondas e dos ventos, o que nos impedia também, para nosso maior dano, de pescar um único peixe. Estávamos de novo expostos à fome e à mercê das águas. (…) Já estávamos porém tão magros e fracos, que mal nos podíamos suster de pé para as manobras do navio; mas a necessidade sugeria a cada um uma solução para encher o estômago e alguém se lembrou de cortar rodelas do couro do tapir e fazê-las ferver na água, imaginando que assim pudessem ser comidas; mas a receita não foi julgada boa. Outros, porém, que também davam tratos à bola, lembraram-se de assar essas rodelas na brasa. Depois de tostadas, rasparam a parte queimada e isso deu tão bom resultado que os que a comiam declaravam que pareciam torresmos. Depois dessa experiência, quem tinha rodelas as guardava e como eram duras como couro seco de boi, foram cortadas em pedaços com foices e outras ferramentas e os que as possuíam escondiam-na cuidadosamente em pequenos sacos de pano, pois davam-lhes tanta importância quanto aos escudos dão entre nós os usurários. E tal qual os sitiados de Jerusalém, que segundo Flávio José se alimentavam com as correias de couro de seus broquéis, chegaram alguns entre nós a comer suas gravatas de marrojim e as solas dos seus sapatos. Os grumetes e pajens do navio, apertados pela fome, comeram todos os chavelhos das lanternas, que existem sempre em grande número nas embarcações, e todas as velas de sebo que conseguiram apanhar. Não obstante a nossa fraqueza, tínhamos que fazer um esforço repetido para tocar a bomba, sob pena de irmos ao fundo e bebermos mais que tínhamos a comer”.
 
 
MORTOS PELA FOME ERAM LANÇADOS AO MAR
 
“A 12 desse mesmo mês (maio), o nosso artilheiro morreu de fome, depois de ter comido as tripas cruas de seu papagaio, e foi como os outros lançado ao mar. Pouco sentimos a sua falta, pois estávamos tão extenuados que daríamos graças a Deus caso fôssemos apresados por qualquer pirata que nos desse de comer. Mas Deus quis afligir-nos durante toda a viagem de regresso e somente um navio foi por nós avistado, mas não nos pudemos aproximar porquanto a nossa fraqueza nos impedia de erguer as velas. Nessas alturas, vindo a faltarem as rodelas e até os couros da cobertura dos baús, e tudo mais que no navio podia alimentar-nos, pensamos ter chegado ao termo de nossa viagem. Mas a necessidade, que tudo inventa, lembrou a alguns a caça aos ratos e ratazanas que, também mortos de fome por lhe termos tirado tudo que pudessem roer, corriam pelo navio em grande quantidade. Foram tão perseguidos por meio das mais engenhosas ratoeiras e tão espreitados por olhos vigilantes como os de gatos, que mesmo à noite, ao clarão da lua, por mais escondidos que estivessem não escapavam vivos. Quando um de nós apanhava um rato, julgava-se possuidor de coisa mais valiosa do que um boi em terra. Vi venderem-se a três e quatro escudos, e tendo o nosso barbeiro apanhado dois de uma vez recusou a oferta de um companheiro que lhe prometera vesti-lo dos pés à cabeça no primeiro porto; mas ele preferira a vida às roupas. Tivemos que cozinhar camundongos na água do mar, com intestinos e tripas, e dava-se as estas vísceras maior apreço do que ordinariamente damos em terra a lombos de carneiro. E para mostrar que nada perdíamos, contarei o seguinte caso: Tendo o nosso contramestre cortado as quatro patas de um grande rato para cozinhá-lo, logo apareceu quem as apanhasse no convés e as fosse assar apressadamente na brasa dizendo nunca ter provado mais saborosa asa de perdiz. Diante de tamanha penúria, teríamos com efeito tudo comido, tudo devorado. Para saciar-nos, até ossos velhos e outras imundícies que os cães tiram dos monturos nos serviam; e é certo que se tivéssemos capim, feno ou folhas de árvores também os comeríamos como animais. 
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO 303 – Junho de 2019 – PARTE 18.
 
Em maio de 1558, a bordo de um navio sem mantimentos e sem água, Jean de Léry e outros companheiros sofriam demais Diz ele: “Durante as três semanas que durou essa fome terrível, não tivemos notícia de vinho nem água doce; desta, de há muito racionada, só nos restava um pequeno tonel. Este, entretanto, era tão poupado que um monarca não teria entre nós maior porção do que qualquer outro, a saber, um pequeno copo por dia. A sede nos atormentava mais ainda do que a fome, por isso quando chovia estendíamos lençóis com um peso no centro para destilar a água da chuva, que era recolhida em vasilhas…”.
 
 
Miguel Flori Gorgulho – [email protected]