Naturalistas Viajantes

JEAN DE LÉRY (PARTE 18)

31 de maio de 2019

A penúria no navio chegou a tal ponto que o comandante já pensava em sortear alguém, sem aviso, para servir de alimentação dos outros.

 

 

Jean de Léry (1536-1613) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. É muito interessante e emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1556, as terras do Rio de Janeiro. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 17, Jean de Léry descreve jornalisticamente as peripécias da viagem de volta à França em maio de 1558.
 
 
ANTES UM RESUMO GERAL DAS PARTES ANTERIORES
 
Estamos na Parte 18. Acho que o leitor gostaria de ter um resumo das 17 partes anteriores, se bem que pode buscar no site Folha [www.folhadomeio.com.br] a fantástica história de Jean de Léry e de vários outros Naturalistas Viajantes.  O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas.
 
PARTE 1 – ABERTURA (Edição 285 – Janeiro de 2018) – Lévi-Strauss explica: “A leitura de Jean de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
 
PARTE 2 (Edição 286 – Fevereiro de 2018) – Jean de Léry aporta pela primeira vez ao norte de Espírito Santo no final de fevereiro de 1557 e tem a oportunidade de observar de perto os índios, durante um escambo.
 
PARTE 3 (Edição 287 – Março de 2018) – Léry observa e anota o que permanecerá por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o planeta. 
 
PARTE 4 (Edição 289 – Abril de 2018) – O incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro:
 
PARTE 5 (Edição 290 – Maio de 2018) – Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres que preparam, mastigando as raízes ou o milho.
 
PARTE 6 (Edição 291 – Junho de 2018) – Jean de Léry conta que “as abelhas da América não se parecem com as europeias. Antes se assemelham às pequenas moscas pretas que temos no tempo das uvas. 
 
PARTE 7 (Edição 292 – Julho de 2018) VOLÚPIA DOS EUROPEUS PELO PAU-BRASIL – Os tupinambás admiram porque os estrangeiros se dão ao trabalho de vir buscar o seu ‘arabutã’ (pau-brasil).
 
PARTE 8 (Edição 293 – Agosto de 2018) – AS GUERRAS TRIBAIS E COMO TRATAM OS PRISIONEIROS – “Quem cai no poder do inimigo não pode esperar remissão”.
 
PARTE 9 (Edição 294 – Setembro de 2018) – A festa canibalesca entre os Tupinambás. Move-os a vingança. Para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro.
 
PARTE 10 (EDIÇÃO 295 – Outubro de 2018) SOBRE O CASAMENTO E A POLIGAMIA ENTRE OS INDÍGENAS. Como os índios promovem seus casamentos e as regras para conseguir uma esposa e como acontece a cerimônia matrimonial.
 
PARTE 11 (EDIÇÃO 296 – Novembro de 2018) COMO RESOLVER DESENTENDIMENTOS. Entre os índios é vida por vida, olho por olho e dente por dente.
 
PARTE 12 (EDIÇÃO 297 – Dezembro de 2018) Léry conta sobre sua visita aos índios pela primeira vez três semanas depois de sua chegada à ilha de Villegaignon.
 
PARTE 13 (EDIÇÃO 298 – Janeiro de 2019) Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora sobre a morte de um prisioneiro e o canibalismo.
 
PARTE 14 (EDIÇÃO 299 – Fevereiro de 2019) Jean de Léry é recebido pelos índios e descreve jornalisticamente como os Tupinambás recebem seus hóspedes.
 
PARTE 15 (EDIÇÃO 300 – Março de 2019) Jean de Léry escreve sobre o tratamento de doentes e como os índios choram os seus defuntos.
 
PARTE 16 (EDIÇÃO 301 – Abril de 2019) Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte.
 
PARTE 17 (EDIÇÃO 302 – Maio de 2019) Jean de Léry escreve sobre a trágica volta à França.  O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres.
 
PARTE 18 (EDIÇÃO 302 – Maio de 2019) Extrema penúria na volta do navio. A situação chegou a tal ponto que o comandante do navio já pensava em sortear alguém, sem aviso, para servir de alimentação dos outros. 
 
 
A TRÁGICA VOLTA DE NAVIO CONTINUA
 
 
 
 
 
Em 1558, a volta de Jean de Léry para a França foi uma tragédia. Os 15 passageiros salvaram-se por milagre. “O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão”. Os quase náufragos comeram até os bichos de estimação que levavam. Até os papagaios que começavam a falar, e eram a estimação dos franceses que conviveram com os índios Tupinambás, foram devorados. Faltavam por completo os víveres. “Em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.
 
 
PENÚRIA EXTREMA A BORDO
 
Diante de tamanha penúria, teríamos com efeito tudo comido, tudo devorado. Para saciar-nos, até ossos velhos e outras imundícies que os cães tiram dos monturos nos serviam; e é certo que se tivéssemos capim, feno ou folhas de árvores também os comeríamos como animais. Mas não é tudo. Durante as três semanas que durou essa fome terrível, não tivemos notícia de vinho nem água doce; desta, de há muito racionada, só nos restava um pequeno tonel. Este, entretanto, era tão poupado que um monarca não teria entre nós maior porção do que qualquer outro, a saber, um pequeno copo por dia. A sede nos atormentava mais ainda do que a fome, por isso quando chovia estendíamos lençóis com um peso no centro para destilar a água da chuva, que era recolhida em vasilhas, mas também aproveitávamos o enxurro do convés e, embora este fosse mais escuro do que alcatrão, por causa da sujeira dos pés, e mais imundo do que o das sarjetas, nem por isso o deixávamos de beber”.
 
 
24 DE MAIO DE 1558: TERRA A VISTA…
 
“A 24 de maio de 1558 tivemos diante de nós as terras da baixa Bretanha, quando, estendidos no convés, já quase não nos podíamos mexer. Como muitas vezes já o piloto nos havia enganado, tomando por terra nuvens que se desvaneciam, ao gritar o marinheiro de vigia no cesto da gávea: ‘Terra, terra’ julgamos ser um gracejo, mas o vento propício nos permitiu verificar logo que não se iludia. (…) Foi quando nos disse o mestre do navio, em voz alta, que, se tal situação tivesse perdurado mais um dia, estava decidido não a lançar sortes, como em tal circunstância praticam os comandantes dos barcos, mas a matar um de nós sem aviso para a alimentação dos outros. Isso não me assustou de modo algum, pois embora não houvesse a bordo nenhum indivíduo gordo, não me teriam escolhido, a menos que quisessem comer apenas pele e ossos”. 
 
 
SALVOS POR PESACADORES
 
“Ao chegarmos a duas ou três léguas da terra da Bretanha, o mestre, juntamente com o senhor Du Pont e algumas outras pessoas, deixou-nos fundeados e dirigiu-se para um lugar vizinho a fim de comprar víveres. A dois dos meus companheiros que também se meteram nos escaleres, dei dinheiro para me trazerem refresco; mas apenas se viram em terra esqueceram a fome do navio e abandonando tudo quanto tinham a bordo, desapareceram sem que jamais os tornasse a ver. Entrementes, aproximaram-se alguns pescadores aos quais pedimos víveres; julgaram eles que zombávamos, ou valeram-se desse pretexto, e quiseram afastar-se. Mas fomos mais ligeiros do que eles e, forçados pela necessidade, nos arrojamos ao barco com tal ímpeto que imaginaram tratar-se de salteadores. Nada lhes tiramos, entretanto, contra a vontade e, aliás, só havia no barco alguns pedaços de pão preto. Entretanto, apesar da penúria extrema que revelávamos, em vez de compadecer-se de nós não teve dúvida um dos miseráveis em receber de mim dois reais por um pedaço de pão que na terra não valeria um ‘liard’. Voltou, porém a nossa gente com pão, vinho e outras provisões e nada disso mofou nem azedou, como é de imaginar”.
 
“Alguns que se encontravam perto do nosso navio, ajudaram-nos em terra a suster-nos e, sabendo dos nossos sofrimentos, acertadamente nos aconselharam a não comermos em demasia e a começarmos pouco a pouco por caldos de galinha bem cozida, leite de cabra e outras coisas destinadas a alargarem as tripas que tínhamos muito contraídas. Os que assim procederam deram-se bem, mas quanto aos marinheiros que logo no primeiro dia se quiseram fartar, dos vinte escapados da fome, boa metade, creio eu, se empanzinou e morreu subitamente vítima de seus excessos.  Dos quinze passageiros, que como disse no capítulo precedente, embarcaram no Brasil, nenhum morreu nem no mar nem na terra. Em verdade apenas salvávamos a pele e os ossos, e mais parecíamos cadáveres desenterrados. Em terra fomos possuídos de tal desgosto pelos alimentos que quanto a mim, ao sentir o cheiro do vinho que me ofereceram em casa numa taça, caí de costas sobre um baú fazendo pensar aos presentes que ia morrer de fraqueza. Por mais de dezenove meses não me deitara à francesa, como hoje se diz, mas quando me puseram no leito aconteceu o contrário do que afirmam, isto é, que quando nos acostumamos a deitar em cama dura não descansamos mais em colchão macio; dormi tão profundamente desta primeira vez que só despertei no dia seguinte ao nascer do sol”. 
 
 
O SOFRIMENTO NÃO TERMINOU A TRAIÇÃO DE VILLEGAIGNON
 
“Parecia que tivéssemos chegado ao fim de nossos sofrimentos. (…) Com efeito, Villegaignon, por ocasião de nosso regresso, entregara ao mestre do navio, sem que o soubéssemos, um processo organizado contra nós, com ordem expressa ao primeiro juiz a quem se apresentasse em França, não só de prender-nos mas ainda de queimar-nos como hereges. Mas aconteceu que o nosso chefe, senhor Du Pont, conhecia algumas pessoas da justiça afeiçoadas à religião reformada. Aberta a caixa em que estava o processo, viram essas pessoas o que lhes era ordenado, mas, em vez de tratar-nos como desejava o nosso perseguidor, obsequiaram-nos com boa mesa, oferecendo recursos aos nossos companheiros necessitados e emprestando dinheiro ao senhor Du Ponto e outros”.
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO 304 – Julho de 2019 – PARTE 19.
 
“Para cúmulo de misérias, ao chegarmos a Nantes tivemos os sentidos transtornados por completo e passamos quase oito dias com o ouvido ao duro e a vista tão ruim, que pensei ficar surdo e cego. Todavia, excelentes médicos e notáveis personalidades que continuamente nos visitavam, com tanto cuidado nos trataram que, quanto a mim, cerca de um mês mais tarde já tinha a vista e o ouvido perfeitos.