Coluna do Meio

13 de agosto de 2019

A Valorização do Conhecimento Tradicional: Rendeiras de Bilro do Delta do Parnaíba

 

 

O Brasil precisa capitalizar o enorme potencial turístico e econômico de suas áreas protegidas e reconhecer as Unidades de Conservação como um dos principais patrimônios do país, conciliando desenvolvimento econômico e social com a manutenção de recursos naturais estratégicos. 

O objetivo aqui é demonstrar a importância do conhecimento tradicional de uma comunidade local como forma de recuperação do patrimônio cultural e também como meio alternativo de subsistência em regiões remotas e menos desenvolvidas no Brasil, tudo com base no desenvolvimento sustentável. Para tanto, foi analisado a Casa das Rendeiras, como um caso bem-sucedido de investimento e reconhecimento do conhecimento tradicional envolvendo a renda de bilro, produzida localmente em uma região de relevância ambiental incontestável, a Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba. 

De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, instituído pela Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, Unidade de Conservação (UC) é um espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção¹.

Um dos grandes objetivos das Unidades de Conservação, e, consequentemente da APA, é a promoção do desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais². E, indiscutivelmente, a valorização do conhecimento tradicional de comunidades presentes em áreas ambientalmente protegidas é um dos principais caminhos para se alcançar a versão mais ampla e forte do conceito de desenvolvimento sustentável. 

A Área de Proteção Ambiental é uma espécie de Unidade de Conservação de Uso Sustentável. A APA pode ser constituída em terras públicas ou privadas, podendo, inclusive, serem estabelecidas normas e restrições para a utilização de uma propriedade privada localizada em uma APA. Nas áreas sob propriedade privada, cabe ao proprietário estabelecer as condições para pesquisa e visitação pelo público, observadas as exigências e restrições legais. Em uma APA instituída em terras públicas, as condições para a realização de pesquisa científica e visitação pública serão estabelecidas pelo órgão gestor da unidade³.

A APA Delta do Parnaíba foi criada pelo Decreto s/n de 28 de agosto de 1996 e está localizada no bioma o marinho costeiro, sua área total é de 309.593,77 hectares e abrange os Municípios de Luís Corrêa, Morro da Mariana e Parnaíba, no Piauí; Araioses e Tutóia, no Maranhão; Chaval e Barroquinha, no Ceará, e as águas jurisdicionais. 

Economicamente, a região também possui grande relevância. Além de abarcar algumas cidades do Maranhão e do Ceará, a APA abrange quase a totalidade do litoral do Estado do Piauí, abarcando municípios que têm como principal atividade econômica o turismo, com complexos hoteleiros e instalação de usinas eólicas e carcinicultura, já implantadas⁴, bem como o artesanato que atrai muitos turistas à região pela sua famosa renda de bilro.  Observa-se, contudo, que a APA indica carência na sua infraestrutura no tocante a benfeitorias, meios de transporte e atendimento de emergência, havendo deficiência de informação no cadastro acerca dos fatores bióticos e abióticos da UC, bem como da situação fundiária da Unidade, que por se encontrar em linha de praia abrange terras da União, dos municípios envolvidos, Estado e particulares⁵. 

Ainda assim, a APA Delta do Parnaíba possui diversos projetos considerados bem-sucedidos. Além da Casa das Rendeiras, que será adiante explorada, a região possui projetos de pesquisas e de educação ambiental que visam desenvolver a  sustentabilidade, patrocinados pela Petrobrás através do programa Socioambiental. Um desses projetos é o “Pesca Solidária”, que se utiliza de diversas formas lúdicas para apresentar a biodiversidade da APA à comunidade, bem como o projeto “Biomade” no qual as artesãs participaram de oficinas de designer. A ideia era que os moldes dos animais marinhos encontrados na APA Delta do Parnaíba, ganhassem formas nas mãos de pessoas que trabalham com renda. Ou seja, Cavalo-marinho, tartaruga marinha, peixe-boi, golfinho viraram aplicações para peças diversas⁶.

Não há no cenário jurídico brasileiro um entendimento pacifico sobre o conceito de populações tradicionais. A definição não existe na Lei do SNUC, já que o dispositivo que conceituava população tradicional foi vetado por ocasião da sanção da Lei n° 9.985/2000. O conceito apresentava problemas, e ao vetar o inciso XV do art. 2º da lei 9605/2000, o Poder Executivo entendeu que o conteúdo ali era abrangente e caberia toda a população brasileira. 

Em 2007, o Decreto nº 6.040 definiu Povos e Comunidades Tradicionais como grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição⁷. 

A Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, da mesma forma, define, no art. 2º, inciso IV a comunidade tradicional como todo grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.

Apesar das definições legais, ainda hoje não há um consenso sobre o conceito de populações tradicionais, de modo que a comunidade jurídica passou a socorrer-se dos conceitos oriundos das ciências sociais, entendendo pela existência de diferentes espécies de populações tradicionais com diferentes instrumentos jurídicos de proteção e valorização, como os quilombolas, os povos indígenas e as comunidades locais. Nesta matéria, restringiremos nos à análise deste último conceito. 

Os direitos dessas populações, com o tempo, progrediram para deixar de abraçar não apenas a dimensão ambiental, mas também a dimensão cultural e a dimensão de inclusão social, inclusão esta que beneficia a sociedade, na medida em que contribui na conservação da biodiversidade e mantém práticas que não agridem o meio ambiente, tal qual delineado no art. 7º do Decreto nº 6.040/2007.

Ou seja, essa definição abrange não só aqueles grupos que querem a preservação da terra, mas também aqueles que querem a garantia de acesso a recursos importantes para a sua subsistência. Assim, é impossível que alguns casos não sejam abrangidos pelos conceitos de povos tradicionais.

É o que ocorre, por exemplo, com as rendeiras de bilro do Delta do Parnaíba. Essa comunidade desempenha uma atividade que pode ser compreendida como uma expressão genuína de uma cultura, pois, ao construir suas peças, as rendeiras expressam, por meio de uma técnica especifica, o seu fazer, o seu conhecimento tácito, o qual foi acumulado das gerações pretéritas, expressividade original que marca sua cultura e territorialidade. Vale mencionar, ainda, que, apesar de o conhecimento sobre como se faz determinada renda ser tradicional, não é considerado conhecimento tradicional associado, mas a informação sobre qual planta fornece o melhor corante para tingir a renda é considerado conhecimento tradicional associado, merecendo a devida proteção legal⁸. 

Em suma, as rendeiras de bilro residentes na APA do Delta do Parnaíba podem ser inseridas no conceito de comunidades locais, que possuem um conhecimento tradicional, considerado como patrimônio cultural do nosso país, além de  alternativa sustentável de subsistência. Trata-se de uma atividade que pode ser analisada em diferentes perspectivas, tais quais ambiental, histórica, econômica, social e cultural. Sendo assim, é uma prática totalmente integrada ao conceito de desenvolvimento local, quando se apresenta como um caminho para o crescimento e desenvolvimento sustentável. 

A associação das Rendeiras dos Morros da Mariana, mais conhecida como Casa das Rendeiras, localiza-se nos Morros da Mariana, no município de Ilha Grande, no litoral do estado do Piauí, Brasil. O município de Ilha Grande está inserido dentro dos limites da Área de Proteção Ambiental (APA) Delta do Parnaíba e é a principal porta de saída para os turistas que visitam a região. 

Por lá, fazer renda é ofício antigo, pois a arte de trançar fios de algodão ou seda é ensinada de mãe para filha há mais de três séculos no bairro. O oficio é ensinado ainda na infância, quando as crianças, por volta dos 7 anos, começam a ter acesso a esse patrimônio afetivo e cultural, que no futuro permite um retorno financeiro⁹. Mulheres de pescadores, donas de casa e até matriarcas da família viram na renda uma oportunidade para melhorar a renda familiar e, com o desenvolvimento e profissionalização da atividade, muitas vezes tornou-se a fonte principal de renda das casas dessas mulheres.

Em muitos casos a atividade é alternativa de sustento familiar, mas noutros é a principal fonte de renda. Há ainda aquelas mulheres que frequentam a Casa das Rendeiras apenas para manter o contato com a comunidade e seguir com tradição. Fato é que o trabalho dessas mulheres hoje é reconhecido nos principais eventos de moda do país e valorizado não apenas no Brasil, mas também no exterior. 

Além da profissionalização dessas mulheres, outras vantagens são sentidas com a valorização do conhecimento local: o turismo cresce, o desenvolvimento da região baseia-se em um patrimônio cultural, cria-se uma fonte de renda, que, em muitos casos, pode se tornar o meio de subsistência familiar, além de contribuir para o empoderamento feminino.  

No dia 03 de junho de 2019 iniciou a 8ª edição do Con¬gresso Brasileiro de Direito Socioambiental. O evento realizado na Pontifícia Universidade Católica de Paraná, em Curitiba, contou com a presença das alunas do mestrado em Direito e Políticas Públicas Izabela Zanotelli Collares e Mônica Thaís Souza Ribeiro. 

As pesquisadoras, do Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do UniCeub – Brasília, apresentaram no Grupo de Trabalho Biodiversidade, Espaços Protegidos e Povos Tradicionais, sob a coordenação dos Professores Doutores Bruno Martins Morais e Juliana Monteiro Pedro, o trabalho científico sobre A Valorização do conhecimento tradicional na busca do desenvolvimento sustentável: um estudo sobre a casa das rendeiras de bilro, do Delta do Parnaíba no estado do Piauí. A pesquisa é desenvolvida desde 2017 e desde então já foi apresentada em congressos no Brasil e no exterior, na University of Strathclyde Law School, pelas pesquisadoras Izabela Collares e Danuta Calazans, no 16th Annual Colloquium of the IUCN Academy of Environmental Law, em Glasgow no Reino Unido em 2018. 

 

 

As pesquisadoras Mônica Ribeiro e Izabela Collares em Curitiba no Congresso de Direito 

 

 
 
 
As pesquisadoras Danuta Calazans e Izabela Collares no Congresso da IUCN em Galsgow, 2018. 
 
 
 
 
 
 
1 – Art. 2º, I, da Lei no 9.985/2000.
 
2 – art. 4º, IV da Lei no 9.985/2000. 
 
3 – § § 1º, 2º, 3º e 4º do art. 15 da Lei no 9.985/2000.
 
4 – FRANCO, Márcia. In: LEUZINGER, Márcia, CAMPANA, Paulo; SOUZA DE, Lorene (org). Áreas de Proteção Ambiental: desafio do desenvolvimento sustentável. UniCeub: ICPD. Brasília. E-book, 2018. Disponível em:https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/12748/3/Ebook%20Áreas%20de%20Proteção%20Ambiental.pdf  Acesso em: 17 junho 2019.
 
5 – MMA. CNCU. Cadastro nacional de unidade de conservação- CNUC. Relatório Parametrizado – Unidade de Conservação.  Área de Proteção Ambiental Delta do Parnaíba. Disponível em:http://sistemas.mma.gov.br/cnuc/index.php?ido=relatorioparametrizado.exibeRelatorio&relatorioPadrao=true&idUc=19. Acesso em: 10 agosto 2018. 
 
6 – VOZ DE ILHA GANDE. Biomade realiza capacitação para rendeiras do Delta do Parnaíba. Edição do Jornal do Parnaíba. Publicado em 18/12/2014. Disponível em: <http://vozdeilhagrande.blogspot.com/2014/12/biomade-realiza-capacitacao-para.html>. Acesso em: 13 agosto 2018.
 
7 – Art, 3º, I, do Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007.
 
8 – UFRGS. Conhecimento Tradicional Associado. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/patrimoniogenetico/conceitos-e-definicoes/conhecimento-tradicional-associado>. Acesso em: 12 de agosto de 2018. 
 
9 – PANORAMA CULTURAL. Saberes Tradicionais – Episódio 4 – Rendeiras de Ilha Grande. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=d1RkJMNUCcg>. Acesso: em 12 de agosto de 2018.
 
 
 

 

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