SANEAMENTO E SAÚDE

Novo Marco Regulatório do Saneamento

2 de julho de 2020

RAYMUNDO GARRIDO – Entrevista

 

 

 

Os rumos do Saneamento Básico no Brasil voltam ao centro do debate com a aprovação do projeto de lei (PL) 4162/2019 pelo Senado que prevê a privatização dos serviços de saneamento básico. Uma mudança que deve melhorar muito os serviços de saneamento básico no Brasil. Sobre o tema, vale buscar uma das melhores entrevistas que a Folha do Meio Ambiente fez (em maio de 2003) com o engenheiro Raymundo Garrido, professor da Universidade Federal da Bahia e ex-Secretário Nacional dos Recursos Hídricos. Nesta edição de julho de 2020, após a aprovação do Marco Regulatório do Saneamento, o professor Raymundo Garrido volta a falar sobre o setor Para Garrido, a falta de saneamento é a maior violência ambiental no Brasil. O mundo aprendeu que investir em saneamento é investir na verdadeira promoção da saúde. Um dos grandes avanços da nova ordem legal é a atribuição à Agência Nacional de Águas – ANA para o estabelecimento das grandes diretrizes do setor.

 
 
 
Folha do Meio – O senhor poderia fazer uma abordagem preliminar sobre a questão do saneamento no Brasil?
 
Raymundo Garrido – O Saneamento no Brasil dá sinais que está renascendo com a aprovação no Congresso do Projeto de Lei 4162/2019, E mais uma vez, firma-se a ideia de que o setor só avança por episódios fortes como uma simples resenha histórica revela:
 
O Código de Águas de 1934, dando a primazia ao papel dos municípios, situação que se estendeu até 1968.  O PLANASA (Programa Nacional de Saneamento), em 1969, que teve como emblema principal a criação das empresas estaduais de saneamento que deram grande impulso ao setor, principalmente no período 1969 – 1986.  “Esquecimento” do problema entre 1987 e 2007 quando praticamente nada avançou em termos de regulação para superar as dificuldades que foram surgindo. De 2007 até os dias atuais, o setor beneficiou-se de uma nova Lei Federal e do PLANSAB, em 2013.
 
 
Folha do Meio – Neste momento, o País está definindo o novo marco legal. O senhor acha que há um novo alento para o setor?
 
Raymundo Garrido – Sim, com toda certeza. Há algumas imperfeições, mas com certeza serão corrigidas. A aprovação do Marco Regulatório do Saneamento mostra que os hábitos da administração pública brasileira estão mudando. O tema saneamento ambiental tem frequentado discussões importantes também na sociedade e o motivo é simples: o mundo aprendeu que saneamento é a verdadeira promoção da saúde! 
 
 
ANO ABASTECIMENTO (%) ESGOTAMENTO (%)
1970 54,40 22,30
1980 75,80 37,80
1991 88,10 43,50
2007 92,00 49,10
Evolução do setor pode ser resumida neste quadro de atendimento (cobertura) dos serviços.
 
 
 
 
Folha do Meio – Mas houve avanços no abastecimento d’água. Por que não houve pela falta de tratamento de esgoto?
 
Garrido – Na verdade o avanço no abastecimento d’água foram amortecidos pelos índices nada animadores do tratamento de esgotos. É justamente a sensação do copo meio cheio ou meio vazio. Geometricamente é a mesma coisa, mas a percepção pela ótica do copo meio vazio faz com que o entusiasmo do brasileiro foi quebrado, pois a década atual bem poderia ter sido a da redenção do saneamento em nosso País. 
Ainda há, nos dias de hoje, mais de três e meio milhões de domicílios urbanos sem acesso ao abastecimento d’água por meio de rede de distribuição, o que, embora seja pouco significativo em termos relativos, é algo inaceitável. É desumano, ainda mais neste início de milênio. O número de residências sem acesso a rede de coleta de esgoto é alto, superior a 35 milhões.
 
 
IDEOLOGIA X EFICIÊNCIA 
PÚBLICO X PRIVADO
 
Folha do Meio – Mas houve aumento das tarifas nos últimos anos…
 
Garrido – – O aumento das tarifas nos últimos cinco anos serviu apenas para fazer face aos salários dos funcionários do setor, nada tendo sobrado para os investimentos. Uma coisa que precisa ficar claro é que há sempre uma discussão sobre o dilema público versus privado que tem prejudicado o avanço da regulação. Na verdade, o que precisa ser posto em relevo é o critério da eficiência e não a ideologia.
 
 
Folha do Meio – Como os países mais adiantados resolveram seus problemas?
 
Garrido – Os países mais adiantados que resolveram bem seus problemas de saneamento, fizeram-no com recursos públicos. Isso não é aplicável ao Brasil que, mesmo com elevada taxa de tributação, não pode contar no prazo que precisa com recursos fiscais para enfrentar um problemão desses. É muito grande. Embora o abastecimento ostente uma situação menos distante do confortável (mesmo assim, são 35 milhões de pessoas sem acesso a água potável), o serviço de esgotamento, principalmente o tratamento, é uma tragédia que alcança a pouco mais de 100 milhões de habitantes. O déficit social no setor do Saneamento é alarmante.
 
 
Folha do Meio – Daí a importância de atrair recursos do setor privado.
 
Garrido – Com certeza. Atrair recursos do setor privado é a solução mais razoável para o problema. Mas o meio empresarial precisa garantias de que as tarifas não inviabilizem sua atuação e que seus ativos não venham a ser expropriados. Esse é o ambiente de negócios necessário e justamente o ponto positivo da legislação cuja relatoria no Senado coube ao Senador Tasso Jereissati, agora aprovada.
 
 
EMPRESASESTADUAIS
 
Folha do Meio – E o papel das empresas estaduais?
 
Garrido – É bom lembrar mais uma vez o relator, senador Tasso Jereissati, ao dizer que o marco regulatório do Saneamento tinha um só inimigo: as empresas estaduais do setor em decorrência da atividade sindical laboral. A verdade é que a ação dessas companhias estaduais dificulta o papel dos mercados como fator de competição. É o que eu disse: o aumento de tarifas só servia para fazer face aos salários dos funcionários.
 
 
Folha do Meio – Aí vem a questão da saúde pública.
 
Garrido – É assim mesmo. Acontece que as periferias urbanas com habitações de pequenas dimensões, abrigando famílias com entre 3 e 7 pessoas, criam condições sanitárias que, associadas à falta de redes de águas e esgotos, contribuem para atrair novas epidemias. Na questão de tratamento de resíduos sólidos o Brasil está no Terceiro Mundo.
 
 
Folha do Meio – Qual o grande avanço da nova ordem legal?
 
Garrido – Um dos grandes avanços da nova ordem legal foi a atribuição à Agência Nacional de Águas – ANA para o estabelecimento das grandes diretrizes do setor. Essa inovação é importante na medida em que existem no País cerca de 50 agências regionais/locais de saneamento, o que fragmenta a orientação para os agentes do saneamento. As agências existentes (subnacionais) passarão a ter uma orientação única que será extremamente útil à evolução do setor.
 
 
Folha do Meio – O que vai competir à ANA?
 
Garrido – Veja, à ANA caberá estabelecer Normas Gerais sobre tarifação, padronização dos contratos, metodologia para indenização de ativos, regras de governança, avaliação dos impactos da regulação, políticas de risco, tudo isso em observância à continentalidade e diversidade do País. E mais: caberá, ainda, à ANA, relevante papel na ação mediadora e arbitral, na elaboração de manuais e na capacitação de servidores. Tem que destacar, ainda, o papel de certificadora que terá.
 
 
Folha do Meio – O senhor acredita na recuperação do tempo perdido?
 
Garrido – Lógico que acredito. Vontade política muda tudo. Quer um exemplo? Vale lembrar outros setores, com experiências semelhantes. O setor de Telecomunicações onde éramos atrasados e hoje todos os habitantes do País têm e podem ter um celular. O setor elétrico que, por meio de duas reformas, chegou ao pleno atendimento: 100% dos municípios brasileiros têm acesso a energia elétrica, apesar da complexidade do setor e de seus desafios.
 
 
Folha do Meio – E na questão dos contratos?
 
Garrido – Bem lembrado e muito importante. A transformação dos contratos de programa em contratos de concessão é um avanço inconteste. No contrato de concessão inexiste competição. Pior:  em vários casos inexistem até mesmo metas a cumprir.
 
Fato curioso é que a agenda ambiental do Brasil não inclui o Saneamento, visivelmente um dos grandes depredadores dos rios e demais corpos d’água. O grande vilão do meio ambiente.