João Guimarães Rosa ABL e a cronologia
1 de dezembro de 2020A última mensagem de João Guimarães Rosa veio de seu memorável discurso pronunciado, em 1967, ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Guimarães Rosa morreu três dias depois. Muitos dizem que parecia um presságio, outros afirmam ser apenas uma coincidência. O fato é que o escritor de “Grande Sertão: Veredas” deixou para a… Ver artigo
A última mensagem de João Guimarães Rosa veio de seu memorável discurso pronunciado, em 1967, ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. Guimarães Rosa morreu três dias depois. Muitos dizem que parecia um presságio, outros afirmam ser apenas uma coincidência. O fato é que o escritor de “Grande Sertão: Veredas” deixou para a literatura nacional um legado de emoções, em causos, história e cultura regional. Guimarães Rosa foi o terceiro ocupante da Cadeira 2, eleito em 8 de agosto de 1963, na sucessão de João Neves da Fontoura e recebido pelo Acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco em 16 de novembro de 1967.
Iniciou sua fala citando sua cidade natal, Cordisburgo, que era o apelido que o tratava João Neves da Fontoura.
Guimarães Rosa durante sua posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, entre Juscelino Kubitschek e Austregésilo de Athayde: escritor morreu 3 dias depois — Foto: O Globo
A CIDADE MILMARAVILHA
“Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre”. Santo, um “Padre Mestre”, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha talvez sido seu único gesto desengajado, gratuito. Tomando da inspiração da paisagem a loci oportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou “O Burgo do Coração”. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supra-ordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo. Mas, por “Cordisburgo”, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, João Neves da Fontoura. – “Vamos ver o que diz Cordisburgo…” – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, “no coração do Rio Grande do Sul”.
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A VIDA E A FÉ
João Neves da Fontoura, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: – “A vida é inimiga da fé…” – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que “a ação é um enfraquecimento da contemplação”; e assim Camus, que “viver é o contrário de amar.” Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.
Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – “Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim…” Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante ou mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento. Giremos a perspectiva.
RECEPÇÃO DE GUIMARÃES ROSA NA ABL
Discurso de Afonso Arinos de Melo Franco
Senhor Guimarães Rosa:
No dia em que me convidastes para receber-vos nesta Casa deixastes claro que a incumbência não me era oferecida como fácil galanteria de concorrente à minha própria eleição.
As razões do vosso convite eram outras, mais substanciais e profundas: provínhamos ambos, pelas nossas origens, daquelas terras largas do sertão mineiro; mundão de léguas de campos, chapadas, catingas e rios; domínio do sol e dos astros sobre a planura, cortado sempre por escassos, silenciosos cavaleiros e suas boiadas.
Nossa zona sertaneja de Cordisburgo a Paracatu é presa a si mesma mais pelos rumos dos rios e os desdobramentos dos tabuleiros do que pelos traços dos caminhos, ou os marcos das povoações. Forma um quadrilátero irregular, que começa à margem esquerda do Rio das Velhas, cruza o São Francisco, atinge a banda direita do Parnaíba e se derrama para o norte, até esbarrar nas douradas areias do Paracatu.
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PAISAGEM HUMANA E SOCIAL DE MINAS
Homem, cavalo e boi se integram naquela vastidão unida e, no entanto diversa; conjunta pelas semelhanças e contrastes. Securas de retorcidos chapadões e frescuras de buritizais nas veredas; paus de espinho e brancos véus-de-noiva; onças e catingueiros; gaviões e siriemas; unha-de-gato e alecrim-do-campo: bravura e doçura em toda parte. Assim o homem e a mulher sertanejos, bravos e doces, como Riobaldo e Diadorim, de Guimarães Rosa; como Pedra Barqueiro e a Esteireira do primeiro Afonso Arinos.
A paisagem humana e social de Minas se distribui, também, mais pelos rios do que pelas estradas. As bacias fluviais contornam e desenham a nossa realidade histórica.
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NOSSA CIVILIZAÇÃO SEGUIU A PÉ E PATA
O ouro e o diamante se colhiam e se apuravam nas catas e datas de beira-rio; o café cobria os morros desmatados junto às torrentes; o gado alçado se criava às soltas nas gratas e socavões, à fímbria das águas móveis.
A nossa civilização seguiu vagarosa, a pé e pata, pelas margens dos cursos d’água. A rude bota de couro d’anta do bandeirante e do minerador, o passo tardo do boi e do cavalo do vaqueiro entraram e se espalharam junto às águas, pelos tempos. Mineiros somos nós, homens de beira-rio, e é por isto que sinto, na sua realidade mágica, essas criaturas são-franciscanas, cujas vidas, cujas almas, a força do vosso engenho veio revelar ao Brasil e, já agora, à cultura contemporânea.
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ARQUITETURA DE BRASÍLIA E LITERATURA
A arquitetura de Brasília e a literatura de Guimarães Rosa provocam a atenção das elites intelectuais do mundo, quando ainda podem encontrar desconfianças retardatárias no seu próprio país. Vosso prestígio de escritor é, com efeito, hoje, como a arquitetura do Planalto, uma das conquistas mundiais da cultura brasileira.
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ABL RECEBE O MAIOR
A Academia Brasileira de Letras, ao receber-vos, sabe que chama ao nosso convívio uma das grandes figuras das letras nacionais de todos os tempos; o escritor que deu de fato uma dimensão maior à nossa realidade: maior pelo rigor do pequeno e pela extensão do grande; maior pela profundeza do interno e pela leveza do externo; maior pela palavra – logos, trabalhada até o sacrifício.
Senhor Guimarães Rosa, é pela Academia Brasileira de Letras que tenho a honra de receber-vos. Mas permiti vós, permitam os nossos ilustres confrades, que, diante de Cordisburgo, o faça também em nome da Vila da Manga de Santo Antônio e Sant’Ana do Paracatu do Príncipe.
Do nascimento em Cordisburgo, em 1908, até o lançamento do livro póstumo “Ave, Palavra”, em 1970.