Meio Ambiente

Lixões a céu aberto, cidades ainda descumprem metas de fechamento de lixões

18 de outubro de 2022

Vinte anos após ser inaugurado mesmo sem a conclusão das unidades de tratamento de chorume, o lixão de Boa Vista, em Roraima, segue em funcionamento. Há pelo menos um ano, ele deveria estar desativado, pois o novo Marco Legal do Saneamento Básico estipulava 2021 como o prazo limite para que todas as capitais brasileiras fechassem… Ver artigo

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Dez anos após lei de resíduos, Brasil tem quase 3 mil lixões a céu aberto

Vinte anos após ser inaugurado mesmo sem a conclusão das unidades de tratamento de chorume, o lixão de Boa Vista, em Roraima, segue em funcionamento. Há pelo menos um ano, ele deveria estar desativado, pois o novo Marco Legal do Saneamento Básico estipulava 2021 como o prazo limite para que todas as capitais brasileiras fechassem seus lixões. A meta não foi cumprida por Boa Vista, Porto Velho (RO) e Cuiabá (MT), como mostra a última edição do Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (Islu), estudo que aponta que apenas metade das cidades brasileiras faz a destinação correta dos resíduos. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 757 lixões a céu aberto foram fechados desde 2019 e há ainda 2.500 no Brasil. Nesse ritmo, o objetivo de zerar os lixões até 2024, como preconiza o Marco, não será cumprido.

Questionada sobre o atraso pelo GLOBO, a prefeitura de Boa Vista diz que a construção de um novo e moderno aterro sanitário “está em curso”. Enquanto isso, moradores do bairro de Doutor Airton Rocha, a 530 metros do lixão, estão expostos à poluição do ar, do solo e das águas do entorno gerada pelo dejetos.

Outra meta do Marco também não foi cumprida: há dois meses, todas as cidades com mais de 100 mil habitantes do país deveriam ter encerrado as atividades de seus lixões. No entanto, 27% desses municípios ainda descartam o lixo incorretamente.

A cada dia, cerca de 280 toneladas de resíduos são levadas ao lixão de Boa Vista, que fica num ponto ermo na BR-174, estrada em direção a Manaus. Estudos identificaram que os espaços de tratamento de chorume e de coleta seletiva nunca funcionaram no local, que se tornou propício para liberação sem controle de gases tóxicos, a partir da decomposição dos resíduos, poluição das águas subterrâneas e contaminação do solo.

Entre ratos e urubus

Habitados por ratos e urubus, o lixão ainda não tinha, em 2019, proteção adequada para evitar a entrada de catadores e de animais, que inclusive podem se tornar vetores de doenças, apontou a pesquisadora Daniella Carvalho Farias, em dissertação para a Universidade Federal de Roraima (UFRR). “Os impactos ambientais que geram riscos à saúde são diversos e podem ser agravados no decorrer dos anos pelo manejo inadequado dos resíduos sólidos, pela contaminação do líquido percolado, liberado na decomposição desses materiais, que infiltra o solo e contamina o lençol freático de águas superficiais ou subterrâneas”, explicou Daniella em seu estudo.

Apesar da legislação determinar que lixões devem estar a, no mínimo, 200 metros de distância de corpos d’água, o leito do igarapé Wai Grande, que deságua no Rio Branco, fica a apenas 152 metros do local.

— As pessoas não se preocupam para onde vai o lixo, então as prefeituras limpam a cidade e jogam tudo num lixão. Só que isso volta, pela contaminação dos mananciais, do solo, dos alimentos, dos peixes, que depois o homem vai consumir. O chorume do lixo infiltra no terreno, contamina os lençóis e vai em direção aos rios. A contaminação também se espalha pelo solo, atingindo vegetais, e há produção de gases que liberam metano na atmosfera — afirma o engenheiro sanitário da Uerj Adacto Ottoni.

Além de irregularidades ambientais, lixões podem intensificar problemas sociais. Em 2017, o lixão de Boa Vista chegou a ser interditado após uma vistoria do Ministério Público do Trabalho encontrar 13 crianças disputando comida com urubus. No relatório, houve ainda menção à prostituição infantil e ao consumo de drogas no local.

O trabalho de Daniella, porém, mostrou que, mesmo após a ação judicial, catadores continuavam adentrando o lixão irregularmente, pulando as cercas.

Associações do setor também apontam a falta de fiscalização adequada sobre os lixões. Presidente da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Carlos Silva Filho diz que a pauta “ainda não é prioridade” entre a maioria das prefeituras, autoridades responsáveis pela gestão dos resíduos sólidos, e que é comum encontrar situações em que aterros foram inaugurados com serviços de descarte adequados, mas que se transformavam em lixões sem controle após menos de um ano, por causa da falta de recursos.

— Caminhamos a passos lentos nessa agenda. Em levantamento que fizemos no ano passado (que passa por atualização), a estimativa era de que os lixões fossem erradicados somente em 50 anos, no ritmo atual — diz Filho.

O Marco do Saneamento apontou caminhos para o avanço do setor, através da obrigatoriedade de contratos de concessão para destinação final dos resíduos, e da indicação de projetos de regionalização, ou seja, a concessão por blocos, para facilitar a entrada de investimentos.

— Não dá para pensar que vamos resolver todo esse déficit histórico com soluções individuais para cada um dos 5 mil municípios. O sistema atual está esgotado, precisamos de políticas públicas e instituição de sistema de cobrança, que custeie os serviços — explica o presidente da Abrelpe.

O Islu 2022 mostra que os estados da região Sul são os mais avançados na erradicação dos lixões, e os únicos com chances de eliminar as unidades até 2030, outra meta, estabelecida pela ONU. Na região, 90% das cidades fazem descarte ambientalmente adequado, acima da média nacional (50%). Já as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as mais atrasadas, com descarte adequado em, respectivamente, 16%, 21% e 23% de suas cidades. Em Roraima e Sergipe, não houve descarte correto registrado.

Ainda sem coleta

Muitos desses municípios com resultados ruins sequer possuem cobertura total de coleta de lixo, o que gera um atraso ainda maior para se alcançar o descarte adequado. Na outra ponta, a maior pontuação do Islu, que analisa números de atendimento da população, sustentabilidade financeira, recuperação dos resíduos coletados e impacto ambiental, foi para Niterói (RJ), seguido por Londrina (PR), e Rio de Janeiro.

As três cidades têm modelos diferentes de tratamento dos resíduos, mas todas possuem um sistema de cobrança. Em Niterói e no Rio, empresas públicas fazem a coleta de lixo, mas a população paga uma taxa à prefeitura. Já em Londrina, o serviço é privatizado. No Rio, a desativação, em 2012, do aterro de Gramacho, que era o maior lixão do continente, foi um marco. Hoje, o lixo da cidade é levado para um aterro sanitário de Seropédica, em contrato com a prefeitura.

Diretor de sustentabilidade e relações institucionais do Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana (Selurb), Carlos Rossin defende o avanço das concessões e das cobranças de tarifas como solução do problema de descarte.

Rossin se baseia nos números do Islu, que aponta as regiões com serviços concedidos e sistemas de cobrança como as mais bem pontuadas. Em Santa Catarina, estado em primeiro no índice, 82% das despesas são cobertas pela cobrança domiciliar, enquanto em Roraima esse percentual não chega a 7%.

— Uma coisa é a limpeza de espaços públicos. Outra é o descarte do lixo domiciliar, que deve ter uma estrutura de cobrança individual. O orçamento municipal não dá conta — diz Rossin, que defende a adoção de contratos longos de concessão, para atrair investimentos. — Com as concessões você traz investimentos, agência reguladora, governança.

O país também precisa avançar nos índices de reciclagem. Apesar de 30% de todo lixo serem potencialmente recicláveis, somente 3,5% dos resíduos do país são reciclados.

Em um aterro sustentável, o descarte adequado não significa apenas a mitigação do impacto ambiental, mas a otimização do aproveitamento do lixo. Gerente da Orizon, empresa à frente de 12 aterros sanitários no país, chamados de ecoparques, Diogo Arantes explica que só é aterrado o material sem valor. No ano, a Orizon deve tratar de 8,1 milhões de toneladas de resíduos.

— Agregamos o máximo valor possível ao resíduo, com a triagem para reaproveitamento de 20% a 30% dos materiais. Depois que o lixo vai para o aterro, fazemos captação de biogás para aproveitamento de energia renovável ou crédito de carbono, e ainda tratamos o chorume para ter água de reúso — explica.

O Ministério do Meio Ambiente informou ao GLOBO que vem “incentivando o fim dos lixões” com medidas de apoio aos municípios, como linhas de financiamento de crédito para catadores e cooperativas de reciclagem.

A prefeitura de Boa Vista não respondeu sobre o prazo para inauguração do novo aterro sanitário. A prefeitura disse que “está na fase de contratação da empresa que fará a coleta seletiva”, e que o plano municipal inclui a construção de três ecopontos de descarte para reciclagem.

Já a Empresa Cuiabana de Zeladoria e Serviços Urbanos (Limpurb) disse que seu lixão está sendo desativado e que realizou a licitação, que prevê investimentos de R$ 29 milhões por ano, para destinação correta em novo aterro, que já recebe 10% do lixo da cidade. A previsão é que em oito meses se chegue aos 100%. A prefeitura de Porto Velho não respondeu.