QUESTÃO INDÍGENA 2

CARTA DE SAUDADE A ORLANDO VILLAS-BÔAS

1 de fevereiro de 2023

Escrita por ocasião de seu falecimento em dezembro de 2002

Silvestre Gorgulho

Os Irmãos Villas Bôas foram paraninfos da Turma de Comunicação 1972, da UFMG. A formatura ocorreu no Conservatório de Música de Belo Horizonte, na noite de 21 de dezembro de 1972, quando Orlando Villas Bôas representou os outros dois irmãos Cláudio e Leonardo. Durante a formatura, logo após o discurso de Orlando, formandos e convidados assistiram ao lançamento do filme-documentário XINGU, produzido pela BBC de Londres. O discurso de Orlando Villas Bôas é considerado um dos cem mais importantes discursos da humanidade e está registrado na página 397 do livro ‘100 DISCURSOS HISTÓRICOS’, de Carlos Figueiredo – Editora Leitura.

 

CARTA ESCRITA POR OCASIÃO DE SEU FALECIMENTO EM 12 DE DEZEMBRO DE 2002

Meu amigo Orlando Villas-Bôas:

A vida ensina sempre. Ensinou a você, ensina a mim e aos nossos filhos. Aprendi uma coisa muito séria: só a saudade faz a gente parar no tempo. Sua despedida, em 12 de dezembro de 2002, me fez voltar ao mesmo dezembro de 1972.

No final desse ano, você tinha acabado de chegar das margens do rio Peixoto de Azevedo, onde contactara a tribo indígena Krenhacãrore. Convidei você para ser o paraninfo da turma de Comunicação’1972 da UFMG. Pois no dia 20 de dezembro, você e um amigo pegaram uma kombi em São Paulo e vieram para Belo Horizonte. Por três dias, vocês ficaram hospedados na minha “república” no 26ª andar do edifício JK, na praça Raul Soares.

Na véspera da formatura, meus 29 colegas e eu tivemos uma verdadeira Aula Magna de Brasil. Foi a mais importante aula dos meus quatro anos de universidade. A aula que direcionou meu caminhar profissional: o jornalismo de meio ambiente. Éramos 30 formandos que, na véspera da grande festa, sentamos no chão do meu apartamento, em círculo como nas tribos, para embevecidos escutar você falando de florestas, de índios, de brancos, de rios e de bichos.

Sua primeira lição foi, para mim, ex-seminarista, um susto:

“Desde o Descobrimento o homem branco destrói a cultura indígena. Primeiro para salvar sua alma, depois para roubar sua terra”.

Depois vieram as perguntas para matar nossas curiosidades. Suas respostas doces, duras e definitivas vinham enriquecidas pela vasta vivência de décadas na Amazônia, como último dos pioneiros da saga da expedição Roncador/Xingu. Eram ouvidas com máxima atenção:

“Foram os índios que nos deram um continente para
que o tornássemos uma Nação. Temos para com os índios uma dívida que não está sendo paga”.

 

“Não fosse a Escola Paulista de Medicina, a Força Aérea Brasileira e a nossa teimosia, muitas tribos já teriam sido aniquiladas”.

“O Serviço de Proteção ao Índio, no Brasil, nunca teve lugar seguro: começou no Ministério da Guerra, com o Marechal Rondon. Depois foi transferido para o Ministério da Agricultura, estagiou no Ministério do Interior e estacionou no Ministério da Justiça. Como o próprio índio, esse serviço parece um estorvo”.

“O índio só pode sobreviver dentro de sua própria cultura”.

Amigo Orlando:

você foi se juntar ao Leonardo, Álvaro e Cláudio, seus irmãos aventureiros. No céu, devem estar relembrando histórias fantásticas, enquanto na terra, para os índios, vocês foram se juntar ao Sol e ao trovão para virar lenda. E, para os brancos, deixam uma lição de vida e de coragem.

Das lições daquela noite de 20 de dezembro de 1972, eu guardo uma muito especial. Em vez de ensinar, o homem branco deveria ter humildade para aprender. Você falava da harmonia em uma tribo:

“O velho é o dono da história, o homem é o dono da
aldeia e a criança é a dona do mundo”.

Meu amigo, Orlando, obrigado pelas lições dadas há mais de 50 anos.

Obrigado por você ter me apresentado o Brasil e ensinado a ser brasileiro. Nunca mais vou esquecer que para a criança ser a dona do mundo, nós temos que seguir seu exemplo de garra, de audácia e de aventura para defender nossas culturas, conservar nossa diversidade, preservar nossas florestas, proteger nossos rios e contactar sempre em nome da paz.

Silvestre Gorgulho

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