ITAMAR FRANCO, O PALÁCIO DA ALVORADA E DONA SARAH KUBITSCHEK
24 de fevereiro de 2023Silvestre Gorgulho
Simplicidade e espontaneidade eram marcas do presidente Itamar Franco. Quem conviveu com ele pode comprovar. Comigo mesmo aconteceram vários exemplos. Vale relembrar um.
Passava das 18 horas do dia 8 de junho de 1993. Uma terça-feira. Acabara de fechar minha coluna no Jornal de Brasília, quando a secretária da redação me chama:
– Silvestre, é do Palácio do Planalto.
Atendi. Era um velho amigo dos tempos da Embrapa, o advogado Mauro Durante, então Secretário-Geral da Presidência da República. Foi logo me perguntando se dona Sarah Kubitschek estava em Brasília. Disse que sim. Tinha estado com ela no apartamento de Márcia, na antevéspera.
– Ótimo! Aguarde um pouquinho que o Presidente Itamar Franco quer lhe pedir um favor.
Foram dois ou três longuíssimos segundos. Um favor? Pensei comigo. Para o Presidente da República? Uma nota no jornal? O que será, meu Deus? Entra o Presidente na linha. Depois de um afetuoso cumprimento e lembranças passadas, diz:
– Silvestre, tomei uma decisão. Estou morando aqui numa casa da Península dos Ministros, mas o Henrique [Hargreaves], a Ruth [Hargreaves] e o pessoal da segurança, todos estão pressionando muito para eu me mudar para o Palácio da Alvorada. O que você acha.
– Presidente…
– Presidente não! Itamar.
– Sim, sim, presidente Itamar… Acho uma sábia decisão. O senhor já deveria ter feito isso há mais tempo. Lá é a residência oficial do Presidente da República. Fico aqui pensando que o presidente Fernando Collor teria tido menos problemas com os vizinhos e com ele próprio se tivesse morado no Alvorada e não na Casa da Dinda. O Palácio da Alvorada vai lhe trazer mais tranquilidade…
– É o que todos falam. Mas não quero ser intruso. Preciso de energias positivas. Só vou numa condição. Aquela foi a residência de um homem de bem, um dos maiores brasileiros e fico assim meio sem jeito de chegar lá no Alvorada… assim sem mais nem menos.
– Como sem mais nem menos, presidente… Itamar? O Palácio é a residência oficial…
– Eu sei. Mas isso tudo para mim tem um ar de mistério. A áurea do presidente Juscelino Kubitschek domina o Alvorada. Não que eu seja supersticioso. Dizem, até que no Palácio da Alvorada o piano toca sozinho à noite…
Sem saber onde ia dar a conversa, enquanto falava ia imaginando mil coisas. Lembrei-me da primeira frase do Mauro Durante: “A dona Sarah está em Brasília?”
– Presidente…
– Não, Itamar…
– OK, Presidente… Itamar. O que o senhor acha se eu conversar com Dona Sarah e contar sua intenção de ir para o Alvorada. Quem sabe…
– Isso mesmo, Silvestre. Grande ideia. Fale com ela.
– Sim, vou sair direto do jornal para o Memorial JK. É aqui pertinho. Volto a falar com o senhor.
– Se ela quiser me ligar é um prazer. Você sabe de minha admiração pelo presidente Juscelino e por dona Sarah. JK me ajudou muito na eleição para Senado em 1974. Quem sabe ela e Márcia passam toda a manhã comigo lá no Palácio da Alvorada.
Fui ao Memorial JK. Encontrei dona Sarah com o coronel Affonso Heliodoro e a Cirlene Ramos. Contei-lhes toda história. Muito feliz e um pouco surpresa, dona Sarah foi logo dizendo que fazia o que presidente Itamar quisesse. Era muito importante ele ir para o Alvorada. Depois de alguns outros comentários, concluiu:
– Silvestre, conheço bem o Itamar. Ele é uma pessoa simples, mas muito atento aos simbolismos. Ele não quer chegar ao Alvorada sozinho. Vamos fazer o seguinte, vou lá recebê-lo com “honras de Chefe de Estado e Espírito de Minas Gerais”.
Diante da aprovação e do incentivo do Cel. Affonso Heliodoro, liguei para Mauro Durante:
– Ministro, estou aqui no Memorial JK com dona Sarah e ela ficou muito feliz com a decisão do presidente Itamar em se mudar para o Alvorada. Ela quer falar com o presidente.
Passei o telefone para dona Sarah. Conversaram e acertaram dia e hora para ela e Márcia irem ao Palácio da Alvorada receber o presidente Itamar Franco.
Assim, dia 10 de junho de 1993, uma quinta-feira, seis meses depois de ser efetivado Presidente da República, Itamar Franco se muda para o Palácio da Alvorada. Além de receber “as Honras de Estado e o Espírito de Minas”, Itamar proporcionou uma das maiores emoções à dona Sarah, eterna Primeira-Dama do Brasil. Ela havia deixado o Alvorada pela última vez em 30 de janeiro de 1961. Há 32 anos ela não voltava à sua primeira residência em Brasília.
Durante a visita, os jornalistas pediram para falar com o presidente e com dona Sarah. O Francisco Baker, Secretário de Imprensa, improvisou uma mesa com duas cadeiras para os entrevistados e várias cadeiras para os jornalistas. Começou a coletiva. Itamar fez agradecimentos à dona Sarah e à Marcia Kubitschek. Logo passou a palavra para a dona Sarah. Não havia microfone. Contaram histórias e respondiam perguntas. Já rolavam uns 10 minutos de entrevista, quando presidente me fez um sinal me chamando. Cheguei e ele cochichou no meu ouvido:
– Silvestre, pede para algum jornalista perguntar para a dona Sarah se o piano do Alvorada toca sozinho à noite.
Achei inusitado, mas cumpri a missão. Perguntei à jornalista Bruna Vieira, que cobria o evento para a TV Globo, se poderia fazer a pergunta.
– Mas é isso mesmo? Tem algum fundamento?
– É a lenda que corre. Uma curiosidade. O que é curioso também é notícia, não acha?
Bruna logo levantou o braço, pediu licença e fez a pergunta:
– Dona Sarah, é verdade que aqui no Palácio da Alvorada o piano toca sozinho?
– Olha, minha filha – respondeu dona Sarah – este Palácio traz energias extras aos presidentes. Se à noite o piano toca sozinho, está provado o alto astral do Palácio da Alvorada. Há coisa melhor do que uma boa música neste ermo encantado do Cerrado?
Aplausos!
Antes de se despedir de Itamar Franco, dona Sarah agradeceu:
– Vivi um sonho, presidente. São 32 anos sem contemplar as colunas de Niemeyer, sem entrar na Capelinha Nossa Senhora da Conceição e sem colher uma flor deste jardim abençoado.
Saí pela rampa do Alvorada com dona Sarah, Márcia, Henrique Hargreaves e Affonso Heliodoro para pegar o carro. Nisso o presidente Itamar chamou:
– Quem vai levar a fona Sarah é o comboio da Presidência da República.
E ele próprio levou dona Sarah até o carro presidencial. Ao voltar, o presidente segurou no meu braço e pediu que o acompanhasse. Passava do meio dia. Ao chegar na sala de entrada, disse assim com muita benquerença:
– Silvestre, não tenho como agradecer. Que manhã vivemos aqui, heim? O Espírito de Minas baixou sobre nós.
– Ora, presidente. Eu que agradeço pelo privilégio de viver este momento…
Nisso passava um senhor, talvez mordomo, com um uniforme azul claro. Itamar o chamou:
– Como é seu nome?
– Augusto, presidente. Às suas ordens!
– Onde você nasceu?
– Na Bahia, presidente.
– Já sei que vamos nos dar bem. Eu nasci num navio, mas fui registrado em Salvador. Augusto é o nome de meu pai. Será que você poderia fazer um favor para nós? Consegue uma televisão, coloque aqui nesse corredor, pra gente ver o noticiário e saber como os jornais deram as notícias de hoje.
– Presidente, tem uma tevê grande lá na sala íntima. A que eu uso no meu aposento é muito pequena.
– Traga a sua, Augusto, aqui é melhor.
E lá veio o Augusto com uma tevê 14 polegadas cinza, uma antena com bombril na ponta, um tamborete e colocou onde o Itamar pediu. Sentamos o presidente e eu no segundo degrau da escada que dá acesso aos aposentos superiores. Ali assistimos o Jornal da Globo e outros noticiários da Band e do SBT.
Que delícia poder viver instantes como esse. Ao sair, tão logo liguei o carro, matutei comigo mesmo: numa manhã vivi a sensação de uma vida inteira. Talvez, seja essa a plenitude da felicidade. Um segredo simples: felicidade é encontrar a nossa alegria na alegria dos outros.