Marco Legal

SANEAMENTO “MARCANDO PASSO”

1 de maio de 2023

Novo Marco Legal do Saneamento é ponto de partida para desenvolvimento econômico e social. Mas volta para novo debate político.

Silvestre Gorgulho

RAYMUNDO GARRIDO – ENTREVISTA

RAYMUNDO GARRIDO é Engenheiro Civil, MSc e DSc em Economia, professor e pesquisador da Universidade Federal da Bahia. Foi Secretário Nacional dos Recursos Hídricos no governo FHC e é um dos técnicos mais especializados do setor. Nesta entrevista, o professor Garrido aborda a situação atual do Marco Legal do Saneamento, relativo ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário. Para Garrido, a falta de saneamento é a maior violência ambiental no Brasil. O mundo aprendeu que investir em saneamento é investir na verdadeira promoção da saúde e desenvolvimento sustentado.

 

A BALA PERDIDA AMBIENTAL

O Brasil é surpreendente. O saneamento está intimamente ligado ao processo demográfico. Entre 1970 e 2023, a população brasileira passou de 90 milhões de pessoas para 220 milhões. Vale salientar: a diferença, 130 milhões, é um novo e grande país. Do tamanho da Itália e da França juntas. No governo Lula 3, os rumos do Saneamento Básico no Brasil voltam ao centro do debate. Não existe pior violência do que a violência ambiental. Verdadeira bala perdida, a violência ambiental é silenciosa e cruel. Mata aos poucos e muito mais pessoas. Em Belém do Pará, por exemplo, apenas 6% da população possuem rede de esgoto. As autoridades sabem que mais de 60% das internações hospitalares de crianças no Brasil são motivadas pela falta de saneamento básico. Por saneamento se entendem as mais relevantes atividades para promoção da qualidade de vida: abastecimento d’água, esgotamento sanitário, coleta, tratamento e disposição final do lixo, além da drenagem urbana.

É ou não violência condenar mais da metade da população brasileira a viver num ambiente insalubre, sem coleta de lixo e sem saneamento adequado?

 

 

 

A ENTREVISTA

 

Silvestre Gorgulho – Sobre o Marco Legal do Saneamento, o governo Lula deu um passo atrás?

Raymundo Garrido – Poderia dizer que o governo brasileiro depois um grande passo à frente, parece ter dado agora uma estacionada. Em 15 de julho de 2020, deu um passo à frente com a sanção da Lei Federal no 14.026, que ficou conhecida como Novo Marco Legal desse setor de Políticas Públicas. O cenário da cobertura dos serviços que compreendem o saneamento era, à ocasião, preocupante, com graves consequências para a saúde coletiva. Hoje, ainda se registram mais de dez mil mortes por ano por saneamento inadequado. Ainda há um longo caminho a percorrer em busca da universalização dos serviços. Pode-se dizer que essa “viagem” mal começou. Mas o Novo Marco, mesmo com menos de três anos de editado, já vem dando sinais de reversão desse quadro desfavorável. É sabido que, com saneamento precário, pode até haver crescimento econômico, mas, desenvolvimento, certamente não.

SG – Qual o objetivo do Novo Marco Legal?

GarridoEntre seus objetivos de destaque, o Novo Marco legal foi concebido para que o Brasil chegue ao ano de 2033 com 99% da população tendo acesso a água potável e a 90% de esgoto coletado e tratado, admitindo estes percentuais como uma ‘proxy’ da universalização dos dois serviços.

O principal nó que o Novo Marco Legal buscou desatar foi o da dificuldade para atrair investimentos, particularmente de origem no capital privado, uma vez que os recursos públicos têm sido cronicamente escassos no País.

SG – Qual o nó a ser desatado?

Garrido – O principal nó que o Novo Marco Legal buscou desatar foi o da dificuldade para atrair investimentos, particularmente de origem no capital privado, uma vez que os recursos públicos têm sido cronicamente escassos no País. Convém assinalar que, desde a edição da referida Lei Federal no 14.026, mais de duas dezenas de leilões de concessões já foram realizados abrangendo 244 municípios e perfazendo a contratação de cerca de R$82 bilhões de investimentos, o que demonstra que o Novo Marco já ganhou sua própria dinâmica, requerendo que se lhe dê continuidade nesta marcha, acompanhada do necessário monitoramento, que passou para a alçada da ANA.

Adicionalmente ao objetivo de tornar o setor atraente ao investidor privado, o Novo Marco também incluiu outras diretrizes, sendo uma delas o estímulo à regionalização do saneamento sentada em um processo regulatório que faz com que o Governo Federal se cinja a conceber e editar normas de referência, por meio da ANA, deixando as especificidades das distintas regiões para serem tratadas pelas agências reguladoras atuantes no âmbito dos governos sub-regionais, estaduais e/ou municipais.

SG – Esse Novo Marco Legal teria um fio condutor?

Garrido – O fio condutor do Novo Marco, além da necessidade de atrair o investidor privado, inclui a competição a que se submetem os prestadores de serviços de saneamento, estatais e privados, na oferta de seus serviços quando dos leilões, bem como a regionalização em blocos formados por municípios. Dita competição é um convite à eficiência na prestação de serviços, fundamental quando se trata de um serviço indispensável em favor da coletividade. A eficiência torna possível a cobrança de tarifas módicas, com ganho para o consumidor do serviço ao mesmo tempo em que o operador concretiza seus resultados e cumpre a obrigação fiscal de entregar a arrecadação devida, forças convergentes que impulsionam a marcha em direção à universalização.

O Governo Federal publicou recentemente esses dois decretos, afrouxando e flexibilizando as condições das exigências às empresas estatais em relação ao compromisso com a eficiência.

 

SG – Como o senhor vê a publicação desses dois decretos relaxando os critérios do Marco Legal?

Garrido – Sim, muito preocupante. O Governo Federal publicou recentemente esses dois decretos, afrouxando e flexibilizando as condições das exigências às empresas estatais em relação ao compromisso com a eficiência. De fato, o objetivo da competição entre os prestadores de serviços é prejudicado pelo adiamento, de março de 2023 para dezembro de 2025, do prazo para que as empresas atualmente detentoras de concessões comprovem suas respectivas capacidades de realizarem os investimentos necessários ao alcance da universalização em 2033. Contratos em desconformidade com as normas, previstos no Marco para regularização até 31 de dezembro de 2021, também continuam vencidos ou com algum tipo de irregularidade mas, conforme decretado, poderão ser regularizados até 2025 em detrimento da eficiência.

SG – O que o senhor achou da formação dos blocos regionais?

Garrido – A formação dos blocos regionais, uma inovação trazida pela Lei Federal no 14.026, teve, pelos decretos, seu prazo postergado para 31 de dezembro de 2025. O prazo previsto no Novo Marco expirou em 31 de março de 2023. Constatou-se que cerca de 37% dos municípios perderam esse prazo, correspondendo a uma população de 66 milhões de habitantes. Como os blocos regionais são uma parte estratégica do Novo Marco dado que a sua definição está diretamente relacionada com a viabilidade econômica do sistema de saneamento que atuará em cada conjunto de municípios integrantes desses blocos, mais razoável seria empreender uma ação, ágil tanto quanto possível, para orientar e implementar a constituição dos blocos faltantes. Assim, se evitaria a espera de quase três anos que, certamente, comprometerá irreversivelmente a meta da universalização em 2033.

SG – É o caso de se acabar com a licitação para disputar a renovação das concessões das empresas estatais que já operam?

Garrido – É outro aspecto preocupante. Não fazer a licitação desfaz o sentido da concorrência estabelecido no Novo Marco Legal. Preocupante porque dará a dispensa às companhias estatais que já atuam em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas de se submeterem a licitação para disputar a renovação de suas concessões. Convém observar que o Novo Marco não exclui as companhias estatais, antes submete todas, estatais e privadas, a uma só regra, princípio basilar de um sistema competitivo. Esse regime concorrencial que o Novo Marco estabeleceu tornou-se necessário após seis décadas, desde o Planasa, ao longo das quais inúmeros avanços foram promovidos pelas companhias estatais, menos o da universalização dos serviços.

 

Tudo está funcionando a contento, desde 2020. Então o melhor, o mais indicado é não alterar a Lei. Há, ainda, a considerar a importância da estabilidade das regras. Este é um relevante elemento quando a atração do setor privado está em jogo.

SG – Como o senhor vê o fato de o legislador ter atribuído à ANA a responsabilidade de regulamentar alguns dispositivos dessa Lei?

Garrido – De fato, Art. 4-A da Lei 14.026/20 indica que a responsabilidade de elaborar as normas de referência é da ANA. Essas normas de referência constituirão as diretrizes complementares ao texto legal, detalhando-o, explicando-o, atividade inerente à regulamentação. Então, se o Legislador aprovou e o Executivo sancionou a atribuição à ANA de regulamentar alguns dispositivos da Lei, não parece razoável que o Executivo proceda a essa tarefa senão por meio da ANA e não por Decreto.

No meu ponto de vista, para que a instância que se ocupa da regulamentação dos inúmeros dispositivos do referido Art. 4-A da Lei 14.026/20 deixasse de ser a ANA, seria necessária a edição de nova Lei que alterasse o mencionado dispositivo.

 

SG – Conclusão: melhor deixar a Lei como está?

Garrido – Olha, agora em julho a Lei faz três anos. Este período funcionou como uma “fase dos testes” e está dando muito certo. Tudo está funcionando a contento, desde 2020. Então o melhor, o mais indicado é não alterar a Lei. Há, ainda, a considerar a importância da estabilidade das regras. Este é um relevante elemento quando a atração do setor privado está em jogo. Investidor quer segurança jurídica.