A CASA DOS ANIMAIS
1 de novembro de 2023Mesmo com os avanços científicos conquistados, o ser humano tem ainda muito a aprender com a natureza.
É maravilhoso estudar o comportamento de cada animal, seja ele mamífero, peixe ou pássaro, em relação à sua casa. Cada espécie tem sua característica, tem sua habilidade e tem, sobretudo, um padrão de arquitetura às vezes complexa, às vezes simples, mas sempre criando técnicas e usos de materiais que lhes permite edificar suas moradias ao abrigo das mais severas condições climáticas. Alguns animais preferem viver em delicados e confortáveis casulos de pelo, paina, lã ou musgo e outros buscam cavidades em árvores, rochas ou solo e, até mesmo, labirintos com formas diversas e adaptadas para chuva, vento, calor ou frio.
O Pássaro Pavilhão macho faz grandes cabanas com
galhos de árvores, com uma característica interessante:
enfeita seus lares com flores, bagas e outros arranjos para
atrair as fêmeas.
O Pássaro Pavilhão macho tem olhos azuis e habilidades de arquiteto e decorador. É um pássaro sedutor. O pássaro pavilhão (bowerbird em
inglês) diversifica os rituais de namoro e exalta a natureza.
Mesmo com os avanços científicos conquistados, o ser humano tem ainda muito a aprender com a natureza. É verdade que alguns animais se contentam em achar refúgios pouco confortáveis ou seguros como tocas e troncos secos, mas existem outros que constroem casas perfeitamente adaptadas a seu peculiar estilo de vida e às necessidades de sobrevivência. Para falar e explicar essa diversidade de moradias na natureza, conversamos como o arquiteto-da-paisagem Carlos Fernando de Moura Delphim.
CARLOS FERNANDO DE MOURA DELPHIM – ENTREVISTA
Arquiteto e paisagista formado pela UFMG, Carlos Fernando é técnico do Iphan e membro da Comissão de Patrimônio Mundial da Unesco. Moura Delphim trabalha com projetos e planejamento para manejo e preservação de sítios de valor paisagístico, histórico, natural, paleontológico e arqueológico. É discípulo de Burle Marx e foi o paisagista favorito do mestre Oscar Niemeyer. Moura Delphim é autor de várias publicações, entre elas JARDINS DO BRASIL.
Folha do Meio – É incrível o comportamento dos animais em relação às suas casas!
Carlos Fernando – De fato, é incrível e muito interessante. É justamente o comportamento construtivo de muitos animais que dá origem às mais curiosas formas de arquitetura, com construções muitas vezes escultóricas. Isto decorre de atividades adotadas por diferentes espécies que se utilizam dos recursos provenientes dos distintos ambientes nos quais habitam.
FMA – Tem animal que ganha sua casa da natureza e outros têm que construí-las, não é?
Carlos Fernando – Esse comportamento difere do surgimento espontâneo de abrigos como as conchas dos moluscos que crescem juntamente com o organismo dessas espécies. Alguns caracóis possuem conchas tão bonitas que sua captura para comercialização os coloca em risco de extinção, como o caracol de deslumbrante coloração de Cuba (Polymicta picta) do qual não existe nenhuma concha igual à outra. Já a arquitetura animal difere por não ocorrer espontaneamente. É consequência do trabalho do animal que não é apenas o arquiteto, mas também o mestre de obra e operário, atividades sem as quais não poderia fruir as vantagens de seu engenho.
FMA – Os humanos buscaram, de alguma forma, o ‘know-how’ com os animais para construírem suas casas?
Carlos Fernando – De certa forma, sim. Mas é evidente que a racionalidade e o conhecimento levaram o ser humano ao aperfeiçoamento e a uma sofisticação maior. A arquitetura bioclimática é, muitas vezes, inspirada em padrões da arquitetura animal. O fato é que alguns animais produzem estruturas extremamente complexas, com formas aparentemente mais racionais do que algumas soluções arquitetônicas humanas, como é o caso das abelhas da espécie Apis melifera, cujas edificações apresentam soluções tão ou mais lógicas do que as humanas. Os favos das colmeias são estruturas extremamente leves, compostas de uma sequência de compartimentos ocos e de forma perfeitamente hexagonal. As formigas, cupins, vespas e ninhos de aves são ou podem ser uma fonte de inspiração.
O fato é que alguns animais produzem estruturas extremamente complexas, com formas aparentemente mais racionais do que algumas soluções arquitetônicas humanas, como é o caso das abelhas da espécie Apis melifera, cujas edificações apresentam soluções tão ou mais lógicas do que as humanas.
FMA – Há casos em que os animais foram mais eficazes?
Carlos Fernando – Interessante, mas há um exemplo fantástico. Nenhuma obra humana pode ser comparada pela leveza, pela perfeição, despojamento e pela capacidade de cumprir suas funções com tanta eficiência como a casa da aranha. A teia de aranha serve não apenas de abrigo como também para capturar as presas nas quais são depositados os ovos que irão alimentar as pequenas aranhas recém-nascidas. Essas construções levíssimas, quase imateriais, cuja empreitada segue uma disposição rigorosa com cada passo de construção dependendo do anterior, resistem à ventania e chuvas. Sua criação segue em ordem rigorosa, não havendo nenhuma arquitetura humana que possa a ela se comparar. É residência, armadilha, despensa ou depósito de alimento, tudo da forma mais etérea e despojada possível.
Exemplo da solução térmica adotada pelos cupins. Um cupinzeiro permite que seus moradores, mesmo durante um incêndio, permaneçam vivos. (foto: José Raul Valério)
FMA – E existem outras tecnologias animais que o ser humano ainda não conseguiu copiar?
Carlos Fernando – Existem sim. Veja o caso da solução térmica adotada pelos cupins. Um cupinzeiro ou um termiteiro permite que seus moradores, os cupins, mesmo durante um incêndio, permaneçam vivos. Nos meios rurais há um costume de se cavar um cupinzeiro para em seu interior se construir fornos com a finalidade de assar alimentos. Quando não se retiram os cupins, o forno continua a crescer, mesmo sendo usado, o que se pode observar em um museu rural existente em Goiânia. Se a arquitetura erudita se utilizasse deste exemplo, mais conhecido pelas técnicas vernaculares, muito se economizaria em refrigeração doméstica. Muito também contribuiria para reduzir o aquecimento global que é acelerado pelo uso de condicionadores de ar.
Existem tecnologia que o ser humano poderiam copiar. É o caso da solução térmica adotada pelos cupins. Um cupinzeiro ou um termiteiro permite que seus moradores, mesmo durante um incêndio, permaneçam vivos.
FMA – E o que mais o surpreende nestes casos?
Carlos Fernando – Muitas coisas me surpreendem. Veja, por exemplo, como é surpreendente que, sem possuir ou manejar qualquer forma de ferramenta, sem ser dotados de habilidade como são as mãos, os animais bem adaptados a seu habitat puderam aprender ou criar técnicas e usos de materiais de construção. Isto lhes permitiu edificar suas moradias ao abrigo das mais severas condições climáticas. Muitas espécies, quando não dispõem de cavidades naturais das quais se aproveitem, constroem ninhos furando troncos, escavando o solo ou mesmo rochas, como é o caso de mamíferos como a toupeira e o texugo. Alguns insetos e pássaros criam labirintos de peças rigorosamente idênticas entre si, como ocorre com as admiráveis obras das abelhas e dos cupins.
FMA – Há outros exemplos?
Carlos Fernando – Sim. Há animais que optam por uma arquitetura que edifica o vazio das cavidades por eles esculpidas. Outros criam obras fazendo maciços com tecidos de fibras e galhos emaranhados como o guache, as cegonhas, águias e abutres. Outros preferem viver em delicados e confortáveis casulos de pelo, paina, lã ou musgo, de forma quase esféricas, como certos beija-flores.
FMA – O ser humano busca reciclar suas matérias primas para a construção. E os animais?
Carlos Fernando – Esta é outra característica interessante e muito curiosa em ver como certos animais reciclam também materiais e construções alheias. Aves, como a coruja, se instalam em buracos escavados nas casas de outras espécies, como os cupinzeiros.
FMA – Na verdade o sistema de construção pode ser bem diferente…
Carlos Fernando – É, cada um se baseia em um diferente sistema construtivo e na disponibilidade de materiais que encontram em seus habitats. Os ninhos das aves são construídos das formas mais engenhosas e intricadas. Enquanto o pica-pau e o martim-pescador escavam os troncos, o joão-de-barro, um hábil construtor, constrói um domo em barro com uma planta-baixa de desenho simples, mas com funções complexas. Uma forma espiralada na qual uma pequena abertura dá acesso ao túnel curvo que conduz à câmara central.
FMA – Enfim, os animais são mais engenheiros ou mais arquitetos?
Carlos Fernando – É verdade, alguns animais, mais do que arquitetos, são habilidosos engenheiros ao definir tipos de estruturas, suas formas e funções. Os castores são arquitetos e engenheiros construtores de barragens altamente resistentes. Constroem represas para conter as águas, utilizando-se de seus dentes de roedor e juntando galhos e troncos nas margens dos rios, com efeitos mais positivos menos danosos do que muitas barragens humanas em concreto armado.
As formas de arquitetura variam de animal para animal porque as funções referem-se à necessidade de abrigo e defesa, de acordo com o ecossistema. Sobretudo contra os predadores e contra as tempestades. E cada construtor tem suas necessidades e suas habilidades.
FMA – Por que pássaros da mesma ordem, do mesmo tamanho variam tanto o tipo de seus ninhos?
Carlos Fernando – É porque a arquitetura é forma, função e técnica. As formas de arquitetura variam de animal para animal porque as funções referem-se à necessidade de abrigo e defesa, de acordo com o ecossistema. Sobretudo contra os predadores e contra as tempestades. E cada construtor tem suas necessidades, suas habilidades e busca a melhor forma de proteger os ovos e filhotes. Protegem-se contra flutuações climáticas e mudanças ambientais, regulando temperatura, nível de umidade, danos mecânicos, troca de gases e ventilação. As técnicas dependem das funções e dos materiais, que variam tanto quanto as formas e funções, incluindo materiais naturais como barro, argila, areia, pedras, galhos, palha e fibras. Suas casas não obstruem a comunicação entre o interior e o exterior, permitindo-lhes observar tudo o que acontece à sua volta. Estudos mais acurados e uma observação mais atenta da vida e do comportamento dos pássaros e de outros animais, podem contribuir com novas e valiosas técnicas para o enriquecimento da arquitetura contemporânea. Integrar o projeto arquitetônico à simplicidade e despojamento das formas sustentáveis animais, pode ser uma alternativa à complexidade das construções modernas.