DIA MUNDIAL DA ÁGUA 3

ÁGUA SUBTERRÂNEA

1 de março de 2024

O acelerado declínio dos aquíferos no mundo

Silvestre Gorgulho

A constatação é grave e merece a atenção dos organismos internacionais: nos últimos 40 anos houve um acelerado declínio dos aquíferos na Espanha, Irã, China e Estados Unidos. Os motivos são mais do que conhecidos: a implantação de sistemas de irrigação não compatíveis com a sustentabilidade por retirada excessiva de água e devido as mudanças climáticas. Segundo pesquisas do professor Scott Jasechko, da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, mais de um terço dos 1.693 aquíferos existentes monitorados pelo estudo caíram pelo menos 0,1 metro por ano entre os anos 2000 e 2022, com 12% deles passando por declínios anuais superiores a 0,5 metro.

ÁGUAS SUBTERRÂNEAS

UM RECURSO MUITO NOBRE

Para falar sobre o tema, convidamos o engenheiro Raymundo Garrido, professor da Universidade Federal da Bahia e ex-Secretário Nacional de Recursos Hídricos.

Silvestre Gorgulho

RAYMUNDO GARRIDOENTREVISTA

 

 

 

FMA – Recente análise feita pelo jornal New York Times dá conta de que os aquíferos estão deplecionando rapidamente à escala mundial. O que está havendo?

Raymundo Garrido – Numa primeira abordagem, é fato amplamente conhecido que a irrigação é a atividade campeã quando se avalia a repartição das vazões de demanda pelos usos múltiplos da água. Isso ocorre, evidentemente, onde essa atividade econômica é praticada, isto é, nas bacias ou regiões onde se fizer presente, a irrigação estará sempre entre as que exercem a maior demanda. Ocorre também que, mesmo quando há irrigação, mas a atividade industrial é, também significativa, principalmente se os ramos de produção fabril forem intensivos no uso da água, o quinhão que cabe à irrigação diminui proporcionalmente. Os demais usos da água somente em alguns exemplos afrontam a irrigação. A referida pesquisa do NYT parece confirmar esse balanço entre os dois mencionados usos dos recursos hídricos e, considerando que a irrigação, sendo uma atividade notadamente rural, está naturalmente inclinada a usar águas subterrâneas, contribuindo para o deplecionamento dos aqüíferos. Mas é importante comentar que não é somente pelo comportamento da demanda por água que muitos aqüíferos estão tendo seus níveis rebaixados. As disponibilidades de água (oferta da natureza) também têm se reduzido em algumas regiões. De fato, a pesquisa indicou que em regiões secas e com vastas áreas dedicadas à agricultura tiveram seus aqüíferos deplecionados, caracterizando a influência da baixa oferta de água pelo meio natural.

 

FMA – Como fica esse balanço geral de acordo com a pesquisa do NYT?

RG – Foram pesquisados 1700 aquíferos em mais de 40 países e o resultado encontrado indicou que cerca de 50% dos aqüíferos estão deplecionando. Nos Estados Unidos, no Vale Central da Califórnia, juntamente com as Planícies Altas verificaram-se baixas acentuadas do nível dos aquíferos. Em várias outras regiões do mundo o cenário é mais ou menos o mesmo. No Irã, a redução dos níveis de águas das formações hidrogeológicas foi também notável. Verificou-se, ainda, que 16% dos aqüíferos tiveram seu nível de água aumentado, e em 20% a situação não pendeu nem para a depleção acentuada nem para a subida expressiva do nível da água. Nas regiões onde os aqüíferos estão experimentando uma subida de nível, os governos estão adotando medidas de regulamentação e/ou, como no caso da Espanha, estão executando a técnica de recarregar seus aqüíferos.

 

FMA – Qual a contribuição das águas subterrâneas para o abastecimento humano no Brasil?

RG – São extraídos cerca de 560m3/s de poços tubulares no Brasil, vazão suficiente para abastecer todo o País durante um ano. Cerca de 20% da população são atendidos por água de origem subterrânea que é distribuída por 52% de todos os 5570 municípios do País. As águas de sub-superfície representam um recurso nobre que deve ser preservado, tanto quanto possível, para usos igualmente nobres. Em conjunto com as águas de rios e lagos, elas propiciam soluções combinadas dependendo da demanda em cada local ou região e das disponibildades de cada fonte.

 

FMA – Sendo invisíveis as águas subterrâneas, como se dá o controle de seu uso no Brasil?

RG – Preliminarmente, vale lembrar que as águas subterrâneas pertencem ao domínio dos estados. Isso significa afirmar que, um mesmo aquífero que subjaza a dois estados vizinhos, A e B, por exemplo, tem dois domínios, um domínio de cada um desses dois estados federados. Portanto, todos os corpos d’água subterrâneos no Brasil são patrimônio dos estados por onde suas águas percolam ou se acumulam. Nesse caso, o controle rigoroso do uso dessas águas é da alçada dos estados. Entretanto um aqüífero pode interagir com as águas superficiais que escoam ou se acumulam no solo que se lhe sobrepõe. Sucede que as águas superficiais podem ser de domínio de um dado estado ou de domínio da União. Consequentemente, é prudente que os estados e a União (neste caso por meio da ANA) mantenham uma atividade de monitoramento do uso das águas subterrâneas. Convém mencionar, entretanto, que mesmo havendo a referida dominialidade, há casos de aqüíferos sobreexplotados em diversas partes do Brasil, indicativo que, no campo da gestão do uso das águas aubterrâneas, ainda há muito por se fazer.

 

FMA – Pode dar exemplos dessa superexplotação?

RG – Sim. São inúmeros, mas vou comentar apenas dois. Veja a situação de Itabira – MG. A indústria faz uso de 1.100 l/s da água do aqüífero Cauê, muito acima da capacidade de recarga desse corpo d’água que é de 140 l/s, e o SAAE extrai 110 l/s do aqüífero Piracicaba cuja capacidade de recarga é de 86 l/s[1]. Isso significa que esses dois corpos d’água estão sendo levados à exaustão caso não sejam adotadas medidas simultâneas de redução da demanda, o que é sempre possível, acompanhadas da eventual importação de águas por transposição, esta última muitas vezes de difícil colocação em prática. Um outro exemplo é o da cidade de Recife que está em uma planície costeira arrodeada de pequenas colinas e do oceano Atlântico, contendo um certo número de rios que cortam a Cidade. O bombeio excessivo de água subterrânea que vem ocorrendo nos últimos 50 anos já produziu um impacto significativo com o deplecionamento dessas águas.

 

FMA – E, afinal, como fugir preventivamente da superexplotação das águas subterrâneas?

RG – Eu aposto no compromisso que os agentes integrantes do Sistema Nacional de Recursos Hídricos (SNRH) e, por extensão, os agentes que participam dos Sistemas Estaduais, devem manter com os princípios, aplicação dos instrumentos e adoção e manutenção do arcabouço legal-institucional voltado para a gestão das águas para que novos episódios de sobrexplotação das águas subterrâneas não surjam, e que práticas já existentes vão desaparecendo pouco a pouco. A confiança que tenho no SNRH procede da constatação de experiências vitoriosas, brasileiras e de outros países que avançaram na gestão de suas bacias hidrográficas simplesmente pela aderência a tais princípios, instrumentos e estruturas de planejamento e gestão. Aqui estou me referindo a algo já bastante difundido no Brasil que são a bacia como unidade de gestão, o respeito aos usos múltiplos da água, a gestão descentralizada e participativa, os instrumentos da outorga e da cobrança pelo uso da água, o papel dos comitês de bacia e agências de água. Todos esses elementos não precisam mais ser discutidos tal é o reconhecimento da eficácia de sua aplicação.

 

FMA – Em que tipo de abastecimento as águas subterrâneas podem dar uma contribuição mais efetiva para a economia dos recursos hídricos?

RG – A resposta a essa indagação está no conjunto de funções que têm os aqüíferos em geral. Em entrevista anterior sobre este mesmo tema das águas subterrâneas (FMA – março de 2022 –  link < https://folhadomeio.com/2022/03/aguas-subterraneas/ > ), tive a oportunidade de comentar que os aqüíferos cumprem, primordialmente, a função de proteger e melhorar a qualidade da água (função filtro), transportar água, entre outras. Adicionalmente a essas funções, observa-se que o uso de águas subterrâneas presentemente no País tem dado uma expressiva contribuição ao meio rural como solução para o abastecimento doméstico e de alguns setores usuários que estejam presentes fora das zonas urbanas. Essa contribuição está chegando na medida em que as sedes municipais vão aumentando a sua cobertura dos serviços, especialmente o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, fazendo com que o Setor Público volte seu olhar para as zonas censitárias de menor significado demográfico. Apesar de a cobertura desses serviços ainda não ter alcançado os níveis ideais à escala nacional, é forçoso reconhecer que o Saneamento Básico experimentou uma evolução não desprezivel no curso das últimas décadas e, nessa trajetória, as sedes municipais foram atendidas em primeiro lugar pela massa crítica populacional que reuniam.

 

FMA – Explique melhor as circunstâncias dessa trajetória do Saneamento Básico. O que são as zonas censitárias?

RG – Sobre a trajetória, de modo bem sucinto, o marco histórico contemporâneo foi o Plano Nacional de Saneamento (Planasa), de 1971, cujo centro nervoso esteve nas empresas estaduais de saneamento, então criadas, que atacaram de frente o déficit dos serviços, atuando primeiramente nas sedes municipais. A legislação avançou ao longo das décadas e vários programas se sucederam dotando as sedes municipais de um determinado nível, não ideal como disse, mas aceitável, de cobertura dos principais serviços de saneamento. Presentemente, o IBGE considera a classificação demográfica do País em oito setores censitários. A Figura seguinte apresenta esse conjunto de setores censitários que estão presentes em cada municipalidade. Os pontos fracos em termos de saneamento básico estão inscritos nos setores censitários 5, 6, 7 e 8, que abrangem os aglomerados rurais isolados dos tipos povoados (Setor Censitário 5) e núcleos (Setor Censitário 6); outros aglomerados rurais (Setor Censitário 7) e zona rural exclusive os aglomerados rurais (Setor Censitário 8). Esses setores censitários contam com populações muito pequenas e é justamente aí que reside a dificuldade devido aos elevados custos resultante da dispersão dos povoados, tanto de implantação quanto de operação. Resolver o problema de levar o saneamento a esses setores do meio rural constitui uma das metas da busca da universalização do saneamento no Brasil atualmente e essa tarefa pode ser solucionada por meio do uso de águas subterrâneas.

[1] saaeitabira.com.br/etas (acesso em 23fev2024).