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A RECONSTRUÇÃO

1 de junho de 2024

HORA DE SACUDIR A LAMA E DAR A VOLTA POR CIMA

Silvestre Gorgulho

 

Início de junho. Desde o final de maio, o tempo no Rio Grande do Sul saiu de uma instabilidade para ficar mais seco. A ausência de chuva é alívio para um Estado que sofreu terríveis temporais. Enchentes que deixaram 169 mortes, muitos desaparecidos e milhares de desabrigados. O sol voltou a aparecer, mas o frio chegou com mínimas de 5 graus em várias áreas do Estado. Começa a reconstrução pela limpeza da lama, das casas, das praças e do esforço para conter as doenças provocadas pela enchente. Para falar sobre as causas e efeitos dessa tragédia climática, sobre as medidas emergenciais e sobre como atenuar ou evitar novas inundações, conversamos com o engenheiro Civil Raymundo Garrido, MSc e DSc em Economia, professor da Universidade Federal da Bahia, pesquisador e ex-Secretário Nacional dos Recursos Hídricos no governo Fernando Henrique Cardoso.

 

RAYMUNDO GARRIDO – ENTREVISTA

 

FMA – Qual a causa desse dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul?

Raymundo GarridoA causa está na ocorrência de fenômenos meteorológicos que alteraram episodicamente o comportamento do principal sistema formador de chuvas no Estado, as frentes frias, causando precipitações continuadas. Estamos em um ano de ‘El Niño’ e, ao mesmo tempo, com registros de altas temperaturas nas águas do oceano Atlântico.

Quando as águas dos oceanos se aquecem acima dos 28°C, a evaporação aumenta significativamente. O que sucedeu foi que os fluxos de ar procedentes da Amazônia, do Atlântico Norte e do Pacífico criaram um bloqueio não permitindo que as frentes frias seguissem sua trajetória para o Norte, permanecendo estacionárias sobre o território do Estado, se precipitando em volumes elevados, gerando enormes vazões de escoamento nos cursos d’água que integram a bacia do Jacuí.

Esse fenômeno já ocorrera nas enchentes de 1941 e de 1983, sendo que o bloqueio em 1941 se deu na região de Porto Alegre (bacia do rio Guaíba), e em 1983 situou-se na região do rio Uruguay. A origem do problema foi, portanto, no campo da meteorologia.

 

FMA – Qual a sua avaliação sobre as inundações que ocorreram em 2023 e, agora, em 2024 no Rio Grande do Sul?

GARRIDOA constatação mais importante é que não estamos preparados para conviver com as enchentes sem problemas. Faltam-nos vários requisitos para enfrentarmos situações como as que se apresentaram tanto no ano passado quanto agora, em 2024, no Rio Grande do Sul.

No caso das capitais estaduais, praticamente todas elas se verticalizaram ao longo da segunda metade do século passado e, por exemplo, tanto a infraestrutura para esgotamento sanitário quanto para a drenagem dos bairros mais antigos, em especial as zonas centrais, mantiveram-se as mesmas.

No caso do Rio Grande do Sul, que é o foco desta entrevista, a enchente histórica de 1941, quase sempre tomada como referência, aconteceu quando o Estado tinha uma população de apenas 3.650.000 habitantes, e Porto Alegre abrigava menos de trezentas mil pessoas. Hoje, o Estado conta com quase 11 milhões de habitantes e a capital já tem aproximadamente um milhão e meio de habitantes. Se levarmos em conta a Região Metropolitana, são 4,4 milhões de pessoas. Depois das experiências de 1941, de 1983 e do ano passado, o que se pode dizer é que o Rio Grande do Sul, de modo geral, e Porto Alegre, em particular, poderiam ter avanços na proteção da população e de sua infraestrutura.

 

FMA – O senhor acha que os estragos poderiam ter sido atenuados se o Poder Público tivesse agido a tempo e a hora?

GARRIDOSem dúvida alguma. Toda obra ou empreendimento de engenharia requer que seu programa de manutenção seja seguido à risca. Para ficar em um só exemplo da presente tragédia, em Porto Alegre o sistema de comportas do muro de isolamento da avenida Mauá apresentou problemas decorrentes exatamente da falta de manutenção. Realmente, a questão da manutenção, não somente no Rio Grande do Sul, mas em todo o País, parece ficar sempre em agenda de secundária importância.

 

FMA – O Brasil sofreu pelo menos quatro grandes tragédias ambientais. Três foram devastadoras e poderiam ser evitadas como a do derramamento de petróleo no ano 2000 na baía de Guanabara e o rompimento das barragens de rejeitos de Mariana e Brumadinho. Essa inundação agora, no Rio Grande do Sul é tão grande quanto. Como o senhor classifica cada uma delas?

GARRIDOOs sinistros das barragens de rejeitos afetaram fortemente os leitos dos rios e áreas das planícies ribeirinhas em termos de contaminação da água. Além disso destruíram patrimônio público e privado que estavam pelo caminho da onda de deslocamento dos rejeitos após o colapso da estrutura das barragens.

No caso de Mariana, o acidente prejudicou, direta ou indiretamente, uma área de 83.400 km2 que corresponde à bacia do rio Doce, deixando rastros de acentuada contaminação, especialmente nos leitos dos rios do Carmo e Gualaxo do Norte. O acidente impôs elevadas perdas ao patrimônio cultural.

No que se refere ao rompimento da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019, o impacto gerado foi decorrente do despejo de 12 milhões de metros cúbicos de lama de rejeitos na bacia do rio Paraopeba, matando 270 pessoas. Mais: devastou fauna e flora, impediu a utilização da água bruta para potabilização, e impôs a proibição da pesca além de ter destruído uma ponte ferroviária.

 

FMA – Qual a diferença entre a tragédia de Mariana e Brumadinho?

GARRIDOAmbos foram expressivamente danosos ao meio ambiente. As avaliações veiculadas na imprensa dão conta de que o desastre de Mariana produziu o maior impacto ambiental já registrado no Brasil, enquanto o de Brumadinho teve o maior impacto social pelas quase trezentas mortes que produziu.

Esses dois acidentes em conjunto, seguramente, não são maiores do que a tragédia do Rio Grande do Sul que abrangeu todo o Estado, isto é, espalhou-se pela maior parte de seus 417 municípios. Ainda não se pode ter uma ideia da cifra dos prejuízos que as chuvas torrenciais estão impondo aos gaúchos pois, ainda chove em vários pontos do território estadual.

 

FMA – Como engenheiro civil, que conselho o senhor daria para atenuar os problemas agora? E, mais importante: para evitar novas inundações?

GARRIDOAfora as medidas emergenciais de salvamento de vidas, humanas e de animais, de desinfecção de locais invadidos pela água, de recuperação de bens do patrimônio natural e das construções, medidas a serem tomadas de forma imediata, há outras que são necessárias. Não só para o Rio Grande do Sul, mas para todo o País. Há necessidade de ampliar e difundir mais os conhecimentos relativos ao comportamento dos sistemas formadores de chuvas e seus efeitos de modo a criar as condições de resiliência a eventos extremos de enchentes.

 

FMA – Sim, mas que investimentos precisam ser feitos?

GARRIDOPrecisa que o País elabore, divulgue e utilize, entre outros, alguns elementos básicos como:

  1. Um Programa Nacional de Convivência com as cheias no contexto dos Planos de Recursos Hídricos identificando as responsabilidades por sua implementação e o aprovisionamento de recursos entre os entes federados;
  2. Introdução, nos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano dos municípios, de normas de ordenamento do uso do solo que desestimulem a implantação de obras de moradia e comerciais ou de serviços em áreas que possam ser reclamadas pelas águas das enchentes, ou seja, pelo leito maior dos rios. Os mecanismos oficiais de financiamento devem inclusive desestimular que construções sejam feitas em áreas de risco de enchente mediante uma política de juros desencorajadores;
  3. Manter um eficiente sistema de previsão e alerta que enseje a tomada de medidas práticas de realocação de populações e seus bens a tempo de evitar mortes e consequências outras em prejuízo das populações afetadas;
  4. Estimular, onde cabível, a transformação de áreas das cidades em “esponjas urbanas” aproveitando a existência de vegetação natural e/ou criando áreas de cobertura vegetal que possibilitem a infiltração de águas de chuva;
  5. Construir “piscinões” para armazenar as águas de excesso de chuvas para drená-las posteriormente de modo programado;
  6. Construir e operar barragens de controle de cheias que são barragens cujo reservatório deve ficar vazio ou apenas parcialmente cheio (dependendo da situação) para esperar as enxurradas e, quando passadas as fortes precipitações, liberar paulatinamente o volume acumulado; e
  7. Proceder à manutenção, preventiva, corretiva e sistemática de todos os equipamentos construídos e/ou instalados para permitir a convivência com as cheias.