ENCHENTE

ENCHENTE DE 2024: UMA TRAGÉDIA EVITÁVEL

1 de junho de 2024

A verdade é que a administração de Porto Alegre se mostrou despreparada para prevenir o pior cenário.

Letícia Heinzelmann, de Porto Alegre

 

A capital gaúcha vivia há oito décadas sob o trauma de uma tragédia que preferia esquecer. A enchente de 1941 abalou a população de Porto Alegre, mas passado tanto tempo, caiu em esquecimento. A cidade tem poucos marcos da cheia catastrófica: o mais visível é a placa que indica a altura das águas na parede do Mercado Público. Esse apagamento teve efeitos devastadores quando o Lago Guaíba voltou a subir de forma ameaçadora neste ano. E Porto Alegre mostrou-se despreparada para evitar a tragédia.

O Mercado Público no centro de Porto Alegre preserva a marca da enchente de 1941 e foi novamente atingido em maio de 2024.

 

 

As enchentes de 1941 e 2024 registraram as cotas recorde do lago: respectivamente, 4,76m e 5,35m. Mas estão longe de ser eventos isolados. Porto Alegre está a apenas 3m do nível do mar e às margens do Guaíba – que hoje chamamos lago, mas é um estuário com características próprias: lago nas bordas e rio no centro, por onde escoam as águas do Jacuí. Recebe ainda a vazão dos rios do Sinos, Gravataí e Caí. Juntos, os quatro rios representam quase um terço da bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul. Precipitações a quilômetros de distância da capital desaguam em seu lago, podendo acarretar enchente mesmo num dia de belo pôr-do-sol.

 

POSIÇÃO VULNERÁVEL

Porto Alegre está numa posição geográfica vulnerável. Não há uma recorrência bem definida para o registro de cheias, que podem ser mais ou menos graves a depender de uma série de fatores climáticos. Geralmente, altos volumes de chuvas são registrados em anos de El Niño, fenômeno em que o Oceano Pacífico fica mais quente que a média. Foi o caso em 1926, 1940, 1967 e 2023, exemplos de anos em que as águas do Guaíba superaram os 3m durante a primavera.

Em 1941 e agora em 2024, outros fatores climáticos somados contribuíram para a recorrência de fortes chuvas no outono, ocasionando novas e mais severas enchentes em maio.

 

Interior do Mercado Público de Porto Alegre. (fotos: Associação Comercial do Mercado Público)

 

 

PROTEÇÃO CONTRA CHEIAS

A capital gaúcha conta, há 50 anos, com um sistema de proteção contra cheias, composto hoje por 68km de diques, como as avenidas Castelo Branco, Edvaldo Pereira Paiva e Diário de Notícias, 24 casas de bombas e um muro de concreto com 14 comportas, que podem ser acionadas quando o Guaíba entra em nível de atenção (2,5m). Sua construção se deu entre 1971 e 1974, no contexto de grandes obras urbanas executadas pela Ditadura Civil-Militar e sem debate popular, o que gera ruídos até os dias de hoje.

Idealizado desde o século XIX, ele começou a sair do papel após 1967, quando o Guaíba subiu a 3,13m. A altura do chamado Muro da Mauá – pois margeia a avenida de mesmo nome – foi projetada para proteger a cidade de enchentes ainda mais graves que a de 1941, contendo o lago até a marca de 6m. Ou seja, acima da cota histórica registrada em 5 de maio deste ano. Com a redemocratização e o crescente engajamento social e ambiental da população local, o muro passou a ser questionado enquanto obstáculo entre a cidade e seu lago.

 

Construção do Muro da Mauá – O muro tem 14 comportas de vedação e integra o Sistema de Proteção Contra Cheias, junto a diques e casas de bombas. Foi construído na década de 1970 a fim de conter inundações, evitando que as águas do Guaíba invadam Porto Alegre.

 

Após sua construção, o Guaíba não registrou cotas de extravasamento por décadas, o que pode ser um indício das mudanças climáticas. Isso reforçou a campanha antimuro, à qual se somaram, inclusive, governantes municipais e estaduais de diferentes espectros políticos. A cidade entrou em alerta apenas em 1983 e 2015, e a prefeitura teve dificuldades em fechar as comportas, já enferrujadas, nas duas ocasiões. Não há relatos de manutenção periódica do sistema.

“Por sorte, o muro é bem reforçado. Nesses anos todos, nunca houve manutenção no concreto, que é agredido por forças da natureza. Vento, poeira, chuva, tudo isso são elementos que vão agindo e deteriorando o concreto”, aponta a arquiteta Lígia Botta, que foi supervisora de Planejamento Urbano em Porto Alegre. Seu marido, o engenheiro Décio Botta, trabalhou no Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), órgão que fiscalizou a instalação do sistema junto a um consórcio alemão. “Foi um estudo muito criterioso e competente. Chegaram à conclusão de que, em função de falta de dados que oferecesse um panorama mais preciso da periodicidade das enchentes, a cota máxima deveria ser de 6m”, explica Lígia.

 

O QUE DEU ERRADO

O Muro da Mauá se tornou um personagem polêmico de Porto Alegre. No livro A Enchente de 41, o escritor Rafael Guimaraens afirma que “a presença daquele cinzento e ostensivo monumento de concreto armado foi transformado numa espécie de ícone do obscurantismo, um entrave tecnocrático a conspirar contra a saudável relação da cidade com o Guaíba”. Ao longo dos anos, foi constantemente criticado, ameaçado e, o mais grave, negligenciado. Até há pouco, se falava em derrubar o muro e substituí-lo por alguma alternativa mais “estética”. Diante da impossibilidade técnica para tal, ele não foi nem substituído nem cuidado.

Em setembro de 2023, ocorreu a primeira cheia acima da cota de inundação em 56 anos. Já foi possível observar o extravasamento da água para a cidade, especialmente na zona norte e no chamado 4º Distrito (antiga área industrial que passa por revitalização) por falhas em comportas e casas de bombas.

 

O VALE DO TAQUARI

Os eventos climáticos foram particularmente severos em outra região do Estado: o Vale do Taquari, cujas águas do rio homônimo também acabam desaguando no Guaíba. Foram fortes chuvas em setembro, depois em novembro e, novamente, em abril e maio deste ano. Numa conjunção de fatores similar ao registrado em 1941. Ainda assim, uma parte do Cais do Porto foi leiloada no início deste ano com a possibilidade de substituir o muro. O contrato está temporariamente suspenso.

Era possível saber o que estava por vir. Nem assim foram feitas vistorias preventivas. A casa de bombas 17, cuja falha deu início ao alagamento no Centro Histórico, aguardava conserto desde 2018. Reportagem da Matinal Jornalismo teve acesso a um procedimento interno que solicitava a manutenção ao custo de R$ 60 mil. Porto Alegre alagou por dentro, já que o muro conteve o Guaíba acima dos 5m por sucessivos dias. A inundação exigiu, por questões de segurança, o desligamento da energia elétrica em outras casas de bombas, obrigando a evacuação de mais dois tradicionais bairros da região central: Cidade Baixa e Menino Deus.

 

Idealizado desde o século XIX, ele começou a sair do papel após 1967, quando o Guaíba subiu a 3,13m. A altura do chamado Muro da Mauá – pois margeia a avenida de mesmo nome – foi projetada para proteger a cidade de enchentes ainda mais graves que a de 1941, contendo o lago até a marca de 6m.

 

FALTA DE MEMÓRIA

Esquecer 1941 custou caro a Porto Alegre. O apagamento de memórias traumáticas coletivas após sucessivas gerações é um fenômeno comum, especialmente em catástrofes que podem ter recorrência após longos períodos. Quem conhecia a história da grande cheia a via como um evento isolado, cuja taxa de recorrência calculada em 370 anos faria não valer a pena a permanência do muro. “Algumas pessoas pensam que o muro é um enfeite. Na verdade, tirando-se ele, o restante do sistema de contenção estaria totalmente inválido. Não dá para acreditar que, por tanto tempo, tentariam destruir o muro”, lamenta Lígia Botta.

 

O desenho original do trabalho para a construção do Muro da Mauá.