JEAN DE LÉRY EXPLICA A NUDEZ DAS ÍNDIAS
1 de junho de 2024O naturalista que entrou de gaiato no navio observa e faz anotações que permanecerão por séculos como documento raro do reencontro de seres humanos, separados há 40 mil anos, desde que deixaram a África para dominar o Planeta. O modo de viver dos indígenas impressiona nosso magoado cronista, recém egresso de um ambiente em litígio filosófico.
A verdade é que Jean de Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi há mais de 400 anos. As histórias que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas. Jean de Léry (1536-1613) faz narrativas preciosas do comportamento, dos costumes e das preferências estéticas dos nativos. Jean de Léry entrou de gaiato no navio do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) e, para nossa sorte, passou a fazer relatos importantes sobre o Brasil recém-descoberto. Quem sabe o incômodo que as mulheres nativas demonstram em cobrir o corpo talvez seja a gênese da tendência moderna dos exíguos acessórios indumentários femininos praticados no Rio de Janeiro. Escreve Jean de Léry: “Mas o que mais nos maravilha nessas brasileiras era o fato de que, não obstante não pintarem o corpo, braços, coxas e pernas como os homens, nem as cobrirem de penas, nunca pudemos conseguir que se vestissem, embora muitas vezes lhes déssemos vestidos de chita e camisas”.
Depois de explicar o incômodo das mulheres nativas em cobrir o corpo e exibirem braços, coxas e pernas sem as pinturas dos homens, Jean de Léry acrescenta: “Os homens, como já dissemos, ainda se vestiam por vezes, mas as índias não queriam nada sobre o corpo e creio que não mudaram de ideia. Em verdade, alegavam, para justificar sua nudez, que não podiam dispensar os banhos e lhes era difícil despir-se tão amiúde, pois em quanta fonte ou rio encontravam, metiam-se n’água, molhavam a cabeça e mergulhavam o corpo todo como caniços, não raro mais de doze vezes por dia. (…) Tinha eu grande prazer em ver os meninos acima de três ou quatro anos, a que chamam curumi-mirim, gorduchos e mais bem fornidos do que os meninos europeus e já enfeitados com suas arrecadas de osso nos beiços furados e com os cabelos tosquiados a seu modo. Tinham não raro o corpo pintado e nunca deixavam de vir dançar diante de nós, em grupos, quando nos viam chegar às suas aldeias. Rodeavam-nos na esperança de uma recompensa, afagando-nos e pedindo repetidamente na sua gíria: ‘cutuassá, amabé pindá’ (meu amigo, dá-me anzóis para pescar). (…) quero responder aos que dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. (…) Os atavios, arrebiques postiços, cabelos encrespados, golas de rendas, anquinhas, sobre-saias e outras bagatelas com que as mulheres de França se enfeitam e de que jamais se fartam, são causas de males incomparavelmente maiores do que a nudez habitual das índias, as quais, entretanto, nada devem às outras quanto à formosura”.
“Não há nação, por mais bárbara que seja, que não tenha procurado, em dado momento, cobrir o corpo com vestimentas ou enfeites, a fim de esconder a nudez. Pois os tupinambás, por mais estranho que pareça, andam sempre nus como ao saírem do ventre materno; e não demonstram em absoluto a menor vergonha ou pudor”. Claude d’Abeville em “História da Missão dos Padres Capuchinhos”.
A COMIDA E A BEBIDA DOS INDÍGENAS
“Os americanos têm duas espécies de raízes, a que chamam ‘aypi’ (aipim) ‘‘maniot’ (mandioca) que crescem dentro da terra em três ou quatro meses, tornando-se tão grossas como a coxa de um homem e longas de pé e meio mais ou menos. Depois de arrancá-las, as mulheres (os homens não se ocupam disso) secam-nas ao fogo (…) ou então as ralam ainda frescas sobre uma prancha de madeira, cravejada de pedrinhas pontudas e as reduzem a uma farinha alva como a neve. Essa farinha ainda crua bem como o farelo branco que dela sai apresenta um cheiro de amido diluído durante muito tempo na água, a ponto de por ocasião de meu regresso, ao encontrar-me certo dia em lugar onde se preparava o amido, o cheiro da preparação me fez recordar logo o das choças quando os indígenas lidavam com a farinha de mandioca.
Para preparar essa farinha usam as mulheres brasileiras grandes e amplas frigideiras de barro, com capacidade de mais de um alqueire e que elas mesmas fabricam com muito jeito, põem-na ao fogo com certa porção de farinha dentro e não cessam de mexê-la com cabaças de que se servem como nos servimos das escudelas, até que a farinha assim cozida tome a forma de granizos ou confeitos.
Fazem farinha de duas espécies: uma muito cozida e dura, a que os selvagens chamam ‘uhi-antan’, usada nas expedições guerreiras por se conservar melhor; outra menos cozida e mais tenra a que chamam ‘uhi-pon’, muito mais agradável do que a primeira porque dá à boca a sensação do miolo de pão branco ainda quente”.
FARINHA PARA PÃO E MINGAU
Jean Léry tenta fazer pão com a farinha de mandioca e diz verificar ser impossível. “A massa incha como a do trigo levedado e, como essa é branca e macia; ao assar, porém, a crosta superior queima e a parte interna se resseca, permanecendo farinhosa. Creio, pois, que quem afirmou que os índios dentre os graus 22 e 23 além da linha equinocial, e que certamente são os nossos tupinambás, viviam de pão feito de pau ralado observou mal e se equivocou”, alfineta.
“Todavia essas farinhas prestam-se para papas a que os selvagens dão o nome de ‘mingau’ e quando dissolvidas em caldo gordo tornam-se granuladas como o arroz e são de ótimo paladar. Os tupinambás, tantos os homens como as mulheres, acostumados desde a infância a comê-la seca em lugar do pão, tomam-na com os quatro dedos na vasilha de barro ou em qualquer outro recipiente e a atiram de longe, com tal destreza na boca que não perdem um só farelo. E se nós franceses os quiséssemos imitar, não estando como eles acostumados, sujaríamos todo o rosto, ventas, bochechas e barbas. Por isso só a comíamos com colher. Algumas vezes as mulheres, depois de raladas essas raízes de aipim e de mandioca, e enquanto ainda se acham frescas, fazem com elas grandes bolas que espremem entre as mãos; o caldo cor de leite que sai é recolhido em pratos ou em vasilhas de barro e exposto ao sol, cujo calor o condensa e coagula como coalhada. Quando querem comer, derramam-no em outros alguidares de barro e o cozinham ao fogo como fazemos com as fritadas de ovos; assim preparado torna-se excelente manjar. (…) As mulheres também plantam duas espécies de milho, branco e vermelho, fincando no chão um bastão pontudo e enterrando o grão no buraco. O nome indígena do milho, a quem em França se chama trigo sarraceno, é ‘avati’, com ele fazem farinha, que se coze e se come como as outras”.
A descrição do cauim, a bebida dos indígenas, é assim registrada: “Cumpre, desde logo, notar que os homens não se envolvem de maneira nenhuma na preparação da bebida, a qual, como a farinha, está a cargo das mulheres. As raízes de aipim e mandioca são também utilizadas no preparo de sua bebida usual. Depois de cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres as fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso, acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em outra vasilha, em vez de engoli-las, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidade igual a uma meia pipa de vinho de Borgonha. Quanto tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do Bourbonais; são, entretanto, mais estreitos no alto que no bojo.
PRÓXIMA EDIÇÃO 364 – julho de 2024 – JEAN DE LÉRY – Parte 5
Jean de Léry explica como os índios fazem o avati, a bebida do milho. São as mulheres, como já disse, que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa. (…) Os selvagens chamam essa bebida cauim; é turva e espessa como borra e tem como o gosto de leite azedo. Há cauim branco e tinto tal qual o vinho. (…) Quando querem divertir-se e principalmente quando matam com solenidade um prisioneiro de guerra para comer, é seu costume beber o cauim amornado e a primeira coisa que fazem as mulheres é um pequeno fogo em torno dos potes de barro para aquecer a bebida.