Parque Nacional da Serra da Capivara 2

Niéde Guidon e o Parque Nacional da Serra da Capivara

1 de agosto de 2024

São 54 anos de dedicação ao maior patrimônio arqueológico brasileiro.

Silvestre Gorgulho

 

A pesquisa, o trabalho científico e o esforço de alguns estudiosos sempre estão derrubando teorias. Por exemplo, a gente aprendeu que os primeiros homens chegaram às Américas pelo Estreito de Bhering, no Alasca, vindos da Sibéria. Pois, pesquisadores descobriram que não é bem assim. E a contestação para essa teoria está em pleno sertão brasileiro. Sítios arqueológicos no Nordeste guardam indícios de que a ocupação humana se deu há mais e 50 mil anos. Pinturas rupestres mostram como era a vida em um passado distante: caçadas, orgias, animais desconhecidos e baleias sugerem que a paisagem e os costumes eram bem diferentes do que conhecemos hoje. Todos estes estudos foram feitos a 530 quilômetros de Teresina, capital do Piauí, próximo às cidades de Coronel José Dias, Brejo do Piauí, João Costa e São Raimundo Nonato. É ali que está um dos parques nacionais mais importantes do Brasil: o Parque Nacional da Serra da Capivara. Sua guardiã e maior pesquisadora, a arqueóloga Niéde Guidon, acaba de receber o título ‘Doutora Honoris Causa’ da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Merecidamente!

 

Niéde Guidon, filha de pai francês e mãe brasileira, é hoje piauiense honorária de fato e de direito. Natural de Jaú-SP, Niéde se formou em História Natural na USP. Há 54 anos pesquisa um dos mais importantes sítios do mundo em arte rupestre: os tesouros arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara.

 

A arqueóloga Niéde Guidon, depois de 54 anos de muito trabalho no Parque Nacional da Serra da Capivara, é hoje presidente emérita da Fumdhan – Fundação do Homem Americano. (fotos André Pessoa)

 

NIÉDE GUIDON – A GUARDIÃ QUE FAZ HISTÓRIA

Reconhecida internacionalmente pelo seu trabalho científico, Niéde Guidon é arqueóloga e doutora pela Sorbonne. Foi seu trabalho, sua luta e sua dedicação que gerou a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara. A verdade é que Niéde, hoje com 91 anos (12 de março de 1933) tinha um ideal: proteger, pesquisar e fazer do Parque Nacional da Serra da Capivara, uma região pobre em economia, mas muito rica em História e Cultura. E transformar a região em um grande centro de estudos e de turismo no coração do Piauí. E ela conseguiu. Foram 54 anos para Niéde mudar o perfil econômico da área com investimentos educação, em cultura e turismo.

A arqueóloga atuou na área por cinco décadas, sendo diretora-presidente da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). Atualmente, ela é presidente emérita. Em 2018, Niéde também foi condecorada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).

 

ENTREVISTA – NIÉDE GUIDON

NIÉDE GUIDON, a guerreira sertaneja

que redescobriu e preservou um dos maiores patrimônios do Brasil.

 

Folha do Meio – O início não foi fácil. Você sempre uma guerreira e iluminada. Conheço sua luta quando começou os estudos e pesquisas na Serra da Capivara. Como foi difícil impedir a depredação e criar condições de preservação. Até ameaças de morte você sofreu…

NIÉDE GUIDONNão foi fácil mesmo. Mas sonho é sonho, comprometimento é comprometimento e sempre com muita determinação. Tudo começou em 1970. Dirigia uma equipe franco-brasileira do Piauí e iniciava as pesquisas em São Raimundo Nonato, pequena cidade perdida no sertão, numa das mais pobres regiões do Brasil. Hoje, 54 anos depois, podemos fazer um balanço de tudo o que foi feito e, principalmente, do que resta a fazer. Mas tem trabalho para mais uma geração! Era inútil falar em proteção ambiental em regiões como São Raimundo Nonato, onde as pessoas morriam de fome, sem criar alternativas de trabalho. Não foi fácil. Se algo não fosse feito imediatamente, os sítios seriam destruídos totalmente. A paisagem degradada e o ecossistema – único na região – seriam aniquilados.

 

A arqueóloga Niéde Guidon fazendo o que mais gosta: trabalho de pesquisa

 

FMA – E qual esse balanço?
NIÉDE
Foram 54 anos de muita dedicação. Nesse tempo foram descobertos vestígios concretos da presença do primeiro homem americano na região, datados com até 50 mil anos. Quem visitou o parque sabe das milhares de pinturas rupestres, fogueiras, urnas funerárias e ossadas de animais pré-históricos, pois todo esse acervo está reunido hoje no museu da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano). O resultado desse mais de meio século de trabalho foi desvendar para o Brasil e para o mundo um patrimônio cultural cuja importância é igual ao das cavernas de Lascaux, na França, ou as da Austrália. Ambas são visitadas anualmente por milhões de turistas.

FMA – Qual é a importância do Parque da Serra da Capivara para a ciência e para a cultura?
NIÉDE
Para a ciência, a importância do Parque está no fato de que ele preserva áreas de Caatinga primária. Nessa área, há cerca de 9.000 anos, se encontravam dois biomas: a floresta amazônica e a mata atlântica. Até hoje temos espécies animais e vegetais de ambos os biomas dentro do Parque. Nele se encontra a maior concentração de sítios rupestres do mundo. A pesquisa nesses sítios arqueológicos permitiu que demonstrássemos a antiguidade das culturas autóctones do Brasil. O Parque, hoje declarado Patrimônio Cultural da Humanidade, tem um acervo comparável a qualquer dos mais famosos sítios do velho mundo. O estudo desses sítios revela a verdadeira origem dos primeiros homens que povoaram a região.

 

FMA – Niéde, hoje – mais de meio século após sua chegada – a região em torno da Serra da Capivara é outra. Como você se sente ao passar um filme na sua cabeça desde que você chegou na região?

NiédeOlha, no “filme na minha cabeça” só “edito” os prazeres das descobertas…. Em 1963, trabalhando do Museu do Ipiranga, em São Paulo, tive as primeiras notícias sobre a existência da riqueza pré-histórica da região da Serra da Capivara. Consegui vir pela primeira vez em 1970 e identifiquei os primeiros cinco sítios arqueológicos com pinturas. Muitos anos se passaram. Mesmo, hoje, aposentada e afastada das atividades, percebo que muitas barreiras foram superadas, a região se desenvolve e este grande patrimônio está protegido.

 

FMA – Você foi persistente e determinada. Quais foram as maiores dificuldades encontradas?

NIÉDEInicialmente conhecemos uma região afastada de qualquer centro urbano, com uma população muito pobre e sem esperanças de melhoras. Fomos muito bem recebidos, mesmo que essas pessoas não entendiam a importância do que chamavam “desenhos de caboclos”. Soubemos então que devíamos trabalhar em prol do desenvolvimento socioeconômico cultural e assim foi. Criamos escolas, desenvolvemos atividades rentáveis, aconselhados por técnicos do BID começamos especialmente a apicultura e o turismo com tudo o que esta atividade envolve.

 

FMA – E as dificuldades.

NIÉDE Dificuldades houve muitas. Às vezes até incompreensão e, também. muita luta para conseguir recursos. Mas é bom lembrar que também tivemos apoios consideráveis. Um projeto do porte do nosso – digo nosso porque foi de toda uma equipe – não começaria e nem fazia a revolução que fez, logicamente, sem enfrentar muitas dificuldades.

 

 

NIÉDE: “Muitas pessoas ajudaram. Poderia citar vários nomes, mas quem não pode deixar de estar nessa relação é Anne-Marie Pessis”.

 

FMA – O trabalho de um líder, por mais sucesso que tenha, nunca termina. O que ainda precisa ser feito na região do Parque da Capivara?

NIÉDE Acho importante destacar que nunca trabalhei, nem pensei, nem agi só. Nunca pensei em ser líder, fui fazendo meu trabalho, procurei especialistas em diferentes áreas e juntos trabalhamos. Poderia citar vários nomes, mas quem não pode deixar de estar nessa relação é Anne-Marie Pessis (*) que, desde o começo dos anos 80, atuou junto em todas as áreas e hoje preside a Fundação Museu do Homem Americano. Estou convencida de que está tudo muito bem encaminhado, funcionando cada vez melhor. Os jovens quase não migram mais, os que se formam fora, em disciplinas como medicina, arquitetura, engenharia…. voltam. É importante ressaltar que muitos que migraram anos atrás retornam para o lugar onde nasceram.

 

FMA – Você cumpriu uma missão difícil e importante ao plantar uma nova mentalidade de pesquisa, de educação e de desenvolvimento regional. Há ainda mais a fazer?

NIÉDE A verdade é que uma nova mentalidade foi instalada e todos que participaram de alguma forma deste processo estão com a consciência tranquila do dever cumprido. Mas não podemos parar aqui. Há muito a descobrir e há muito o que fazer ainda… A continuidade dos trabalhos de pesquisa vai depender das novas gerações.

 

(*) A arqueóloga francesa Anne-Marie Pessis pesquisa, junto com Niéde Guidon, a Pré-História brasileira e são responsáveis pela Fundação do Homem Americano. Anne-Marie Pessis, que hoje preside a Fumdham, é professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para Pessis, Niéde adotou, desde o início, uma abordagem pluridisciplinar nas pesquisas científicas nas terras do semiárido e integrou cientistas de diversas áreas do conhecimento. Anne-Marie tem dois livros sobre o Parque: um referente às pinturas rupestres e outro sobre o bioma e as sociedades humanas da região.