NATURALISTAS VIAJANTES

JEAN DE LÉRY – PARTE 9

1 de novembro de 2024

A festa canibalesca não para. Eles comem a carne dos prisioneiros não por gulodice, mas por vingança e ódio. Apenas não devoram os miolos.

Miguel Flori Gorgulho

A festa canibalesca continua. Jean de Léry (1536-1613) aquele que entrou de gaiato no navio, continua suas histórias sobre o Brasil de 1550. Léry – só para relembrar – acreditou na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon e embarcou em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. Um detalhe importante nas festas canibalescas quando os índios comiam seus prisioneiros. Eles não comem a carne humana, como poderíamos pensar, por simples gulodice. (…) Move-os a vingança, salvo no que diz respeito às velhas, como já observei. Por isso, para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até o nariz e a cabeça, com exceção, porém dos miolos, em que não tocam”.

 

SENTIMENTO DE ÓDIO

Quando a carne do prisioneiro, ou dos prisioneiros, pois às vezes matam dois ou três num só dia, está bem cozida, todos os que assistem ao fúnebre sacrifício se reúnem em torno dos moquéns, contemplando-os com ferozes esgares; e por maior que seja o número de convidados, nenhum dali sai sem o seu pedaço. Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice. (…) Move-os a vingança, salvo no que diz respeito às velhas, como já observei. Por isso, para satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até o nariz e a cabeça, com exceção, porém dos miolos, em que não tocam”.

Léry narra a estranheza que os indígenas experimentam diante do medo da morte demonstrado pelos europeus e vê parecença entre as barbaridades dos selvagens e as dos agiotas. Deveríamos acrescentar à lista as pessoas corruptas, políticos ou não. “Certo dia os nossos selvagens surpreenderam dois portugueses em um casebre de barro em que viviam, dentro da mata. (…) Defenderam-se os assaltados valentemente desde a manhã até a tarde e depois de esgotadas as munições de arcabuz e as setas das bestas, saíram com espadas de duas mãos e ainda mataram e feriram muitos dos assaltantes; mas os selvagens queriam pegá-los vivos e o conseguiram afinal, levando-os prisioneiros, e de seus despojos vendeu-me um selvagem algumas vestimentas de couro, tendo também um dos intérpretes trocado por duas facas apenas uma salva de prata cujo valor os assaltantes ignoravam. Na aldeia, os selvagens arrancaram as barbas aos dois portugueses e depois os mataram cruelmente. E como esses pobres homens assim flagelados se lamentassem, os bárbaros vencedores, zombando, perguntavam:

– ‘Como, depois de vos terdes tão valentemente defendido, mostrais menos coragem do que mulheres, agora que devíeis morrer com honra?’ 

(…) Em boa e sã consciência tenho que excedem em crueldade aos selvagens os nossos usurários, que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos viúvas, órfãos e mais criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim lentamente”.

O FEITIÇO DA ESCRITA

Os indígenas se maravilham diante do poder da escrita e a consideram um feitiço:

– Quando cheguei ao Rio de Janeiro e me pus a aprender-lhes a língua, escrevia sentenças e depois as lia diante deles: e julgavam que era feitiçaria, e diziam uns aos outros:

 ‘Não é maravilhoso que quem ontem não sabia uma palavra de nosso idioma possa hoje ser entendido com um pedaço de papel?’’’. 

Léry discursa sobre a religião dos nativos e suas crenças e narra um acontecido: “Achava-me ceando certa ocasião com alguns patrícios em uma aldeia chamada Ocarantin quando surgiram os selvagens do lugar, não para comer, mas para contemplar-nos, pois não costumam comer em companhia das pessoas a que querem honrar.  Orgulhosos de ver-nos na aldeia, demonstravam-nos por todos os modos a sua amizade e com os ossos de peixes em forma de serra, que traziam, afugentavam os meninos dizendo: ‘retirai-vos, criançada, não sois dignos de chegar perto dessa gente’.

A turba não nos interrompeu com uma só palavra durante toda a refeição. Um ancião, entretanto, que nos observava cuidadosamente, e nos vira orar a Deus antes e depois da comida, perguntou-nos:

‘Que significa isso que acabais de fazer tirando o chapéu por duas vezes, em silêncio, enquanto um só fala? Essas palavras eram dirigidas a vós ou a alguém ausente?’

(…) Depois de responder ao velho que era a Deus que dirigíamos as nossas preces, o qual, embora não seja visto por ninguém a todos ouve perfeitamente e conhece o que têm no coração, etc. Ouviram-me todos com grande admiração e muito atentos e, ao terminar, apareceu outro ancião que tomou a palavra e disse:

 ‘É certo que dissestes coisas maravilhosas e bonitas que nunca ouvimos; a vossa arenga, entretanto nos lembra o que muitas vezes ouvimos de nossos avós, isto é, que há muito tempo, já não sei mais quantas luas, um mair como vós, e como vós vestido e barbado, veio a este país e com as mesmas palavras procurou persuadir-nos a obedecer a vosso Deus; porém, conforme ouvimos de nossos antepassados, nele não acreditaram. Depois desse, veio outro e em sinal de maldição doou-nos o tacape com o qual nos matamos uns aos outros; e há tanto tempo já o usamos que se agora desistíssemos desse costume as outras nações vizinhas zombariam de nós’.

Replicamos-lhes com veemência, que não deviam importar-se com os motejos dos outros, pois se adorassem, como nós, o Deus verdadeiro, venceriam todos os inimigos que os viessem atacar. E graças à autoridade que Deus emprestou às minhas palavras, ficaram os nossos tupinambás tão abalados que não só prometeram seguir os nossos ensinamentos e não mais comer carne humana, mas ainda se ajoelharam conosco enquanto rezamos. E um intérprete lhes explicou o sentido de nossas preces. Depois dessa cena levaram-nos os selvagens para que repousássemos em redes de algodão, mas antes de começarem a dormir já os ouvíamos catar todos juntos que para se vingarem de seus inimigos deviam aprisionar e comer o maior número possível”.

O CANTO DE LOUVOR

Escreveu Jean de Léry: “Com o fim de abastecer-nos de víveres e outras coisas necessárias, passei um dia no continente com dois tupiniquins e outro selvagem da nação Oneanan, que lhes é aliada, o qual, com sua mulher, viera visitar os seus amigos e voltava para sua terra. Atravessávamos uma grande floresta de árvores variegadas, toda verde de ervas e cheirosa de flores, ouvindo o canto de infinidade de aves que gorjeavam no meio da mata banhada de sol. De coração alegre, senti-me levado a louvar a Deus por todas essas coisas e comecei a cantar em voz alta o salmo 104:

 ‘Exulta, exulta, minha alma, etc.’  Os três selvagens e a mulher, que vinham atrás de mim, tiveram tamanho prazer na música de minhas palavras, pois o sentido não eles entendiam, que ao terminar eu o cântico, o Oneanan todo comovido e embevecido exclamou:

‘Na verdade, cantaste maravilhosamente bem e fiquei muito contente em ouvir o teu canto que me recorda o de uma nação aliada, nossa vizinha. Mas nós não entendemos a tua língua, por isso explica-nos o teu cantar’. 

PRESENTE PELO MEU CANTAR

– Como eu era o único francês ali presente e só ia encontrar intérpretes no lugar onde pretendíamos dormir, expliquei como pude que não só havia louvado a Deus em geral, pela beleza e governo de suas criaturas, mas ainda o havia particularmente aplaudido como único criador dos homens e de todos os animais, frutos e plantas espalhados pelo mundo inteiro. Expliquei mais que a minha canção fora ditada pelo espírito desse Deus magnífico, cujo nome eu celebrava; que fora já cantada há cerca de dez mil luas por um dos nossos grandes profetas o qual a legara à posteridade. Lembro mais uma vez que os selvagens não costumam interromper os discursos de ninguém; por isso me ouviram atentos pelo espaço de meia hora proferindo apenas de quando em quando sua habitual interjeição: ‘Teh’. E afinal disseram-me:

‘Como vós os mairs sois felizes por saberdes tantos segredos ocultos a nós, entes mesquinhos, pobres miseráveis!’

E para agradar-me deram-me um pequeno aguti (cutia) que traziam, dizendo: ‘Toma lá, já que cantas tão bem’.

 PRÓXIMA EDIÇÃO 369 – novembro de 2024 –

JEAN DE LÉRY – Parte 10

Sobre o casamento e a poligamia entre os indígenas: “Os índios observam tão somente três graus de parentesco; ninguém toma por esposa a própria mãe, a irmã ou filha, mas o tio casa com a sobrinha e em todos os demais graus de parentesco não existe impedimento. A cerimônia matrimonial é a seguinte: quem quer ter mulher, seja viúva ou donzela, indaga de sua vontade e em seguida dirige-se ao pai ou na falta deste, ao parente mais próximo, para pedi-la em casamento. Se lhe respondem afirmativamente leva consigo a noiva como legítima mulher sem que se lavre nenhum contrato”.