Naturalistas Viajantes

VISITA AOS TUPINAMBÁS: “E VOCÊ AÍ QUER UM PÉ ASSADO”

1 de março de 2025

JEAN DE LÉRY ESCREVE SOBRE UM PRISIONEIRO MORTO SEIS HORAS ANTES E CUJOS RESTOS AINDA PODE VER. E AINDA LHE FOI OFERECIDO UM PÉ ASSADO DA VÍTIMA.

Miguel Flori Gorgulho

JEAN DE LÉRY – PARTE 13

O relato de Jean de Léry (1536-1613 sobre o início da História do Brasil é impressionante. Léry conta uma experiência estarrecedora. Diz ele: “Ao chegarmos (o intérprete e eu) na aldeia dos Tupinambás, pouco antes do pôr do sol, encontramos os selvagens dançando e bebendo cauim em homenagem a um prisioneiro morto seis horas antes e cujos restos ainda pudemos ver no moquém. Naturalmente fiquei estarrecido diante de semelhante tragédia”. Explica Léry que o intérprete foi tomar cauim com os índios e o deixou sem instruções. “Com a bulha que faziam os selvagens dançando e assobiando e festejando a matança do prisioneiro não me foi possível dormir; eis que de repente um dos convivas traz-me na mão um pé assado e moqueado da vítima e se aproxima de mim perguntando se desejava comer…”

 

A TERRÍVEL EXPERIÊNCIA

Jean de Léry conta uma experiência estarrecedora. O aperto que experimenta por desconhecer a língua e os costumes dos nativos é partilhado com o leitor: “Nesse mesmo dia eu e o intérprete tocamos para diante e fomos dormir na segunda aldeia chamada ‘Eyramiri’ e que os nossos denominam ‘Goset’ por causa do trugimão aí residente. Ao chegarmos, pouco antes do pôr do sol, encontramos os selvagens dançando e bebendo cauim em homenagem a um prisioneiro morto seis horas antes e cujos restos ainda pudemos ver no moquém. Naturalmente fiquei estarrecido diante de semelhante tragédia, mas isso não foi nada em comparação com o medo pelo que logo depois passei. Entramos numa casa da aldeia onde, de acordo com o costume da terra nos sentamos cada qual em sua rede. Logo depois puseram-se as mulheres a chorar enquanto o dono da casa nos dava as boas-vindas. Entrementes o intérprete a quem tais costumes não eram estranhos e que apreciava cauinar com os selvagens retirou-se para o grupo dos dançarinos e me deixou ali em companhia de algumas pessoas sem nenhuma instrução especial. Como eu estava cansado, depois de ter comido alguma farinha de raízes e outros mantimentos, inclinei-me e deitei na rede em que estava sentado.

JEAN DE LÉRY NÃO CONSEGUE DORMIR

 Com a bulha que faziam os selvagens dançando e assobiando e festejando a matança do prisioneiro não me foi possível dormir. Eis que, de repente, um dos convivas traz-me na mão um pé assado e moqueado da vítima e se aproxima de mim perguntando se desejava comer, o que vim a saber depois pois naquele momento não o entendera.

Isso causou-me tal pavor que parece desnecessário dizer que perdi toda a vontade de dormir. Pensei com efeito que a apresentação da carne humana pelo selvagem significava uma ameaça e que se pretendia com isso dar-me a entender que muito breve seria eu também preparado para o festim. Como uma suspeita acarreta outra, imaginei que o intérprete me traíra deliberadamente entregando-me a esses bárbaros.

Assim, se alguma abertura houvesse por onde eu pudesse fugir, teria escapulido. Vendo-me, porém, cercado de todos os lados por indivíduos cujas intenções eu ignorava (embora não me quisessem mal algum) acreditava que seria realmente comido e por isso rezei a noite inteira com todo o fervor do coração.

LÉRY APAVORADO QUERIA IR EMBORA

Coloque-se o leitor em meu lugar e avaliará, sem dificuldades, tudo o que padeci nessa noite. Ao amanhecer, o trugimão que passara a noite na patuscada com os selvagens, veio ter comigo e vendo-me tão pálido e desfigurado e mesmo febril perguntou se me achava incomodado e se não descansara bem. Respondi encolerizado que não pregara o olho e que ele era um homem mau, pois me deixara no meio de gente que eu não entendia. E ainda, muito assustado, pedi-lhe para sairmos dali sem demora.

Disse-me então o intérprete que não tivesse medo, pois os selvagens nada tinham contra nós, e contou-lhes o que me passara pela cabeça. E os índios que, satisfeitos com a minha vinda e querendo agradar-me não haviam arredado o pé, declararam que não haviam percebido o meu medo, mas lastimavam o que me sucedera. E como são galhofeiros, desataram a rir de minhas atribulações”.

 

 

 

PRÓXIMA EDIÇÃO abril – 373 – Parte 14

Jean de Léry estava estarrecido com tudo. A maneira de saudarem quem os visita é detalhada jornalisticamente: “Apenas chega o viajante a casa do mussucá a quem escolheu para hospedeiro, senta-se numa rede e permanece algum tempo sem dizer palavra. É costume o visitante escolher um amigo em cada aldeia e para a sua casa deve dirigir-se sob pena de descontentá-lo. Em seguida reúnem-se as mulheres em torno da rede e acocoradas no chão põem as mãos nos olhos e pranteiam as boas-vindas ao hóspede, dizendo mil coisas em seu louvor como por exemplo: ‘Tiveste tanto trabalho em vir ver-nos. És bom. És valente’. Se o estrangeiro é francês ou europeu, acrescentam: ‘Trouxestes coisas muito bonitas que não temos em nossa terra’. Pra responder deve o recém-chegado mostrar-se choroso também.