Naturalistas Viajantes - Jean de Léry (Parte 15)

VILLEGAIGNON MANDA UMA CAIXINHA SURPRESA PELO NAVIO

3 de maio de 2025

Jean de Léry se prepara para a volta em 4 de março de 1558 e navio leva uma carta de Nicolas Villegaignon que revela uma terrível traição.

Miguel Flori Gorgulho

Jean de Léry (1534, Lamargelle, França – 1613, L’Isle, Suíça) depois de fazer suas observações de como os indígenas “tratam os selvagens os seus doentes, dos funerais e sepultura e do modo de chorar os seus defuntos’ fala de sua trágica viagem de volta à França. Léry narra a verdadeira aventura de sua viagem cheia de contratempos, depois de sua “estadia brasileira parecer um convescote, que é como os portugueses queriam renomear o anglicismo ‘piquenique’. A volta de Jean de Léry acontece em 4 de março de 1558.

 

VILLEGAIGNON: UMA CAIXINHA DE SURPRESA

 Depois da permanência de quase dois meses “no sítio denominado Olaria”, Villegaignon, como Vice-Rei do país, expede licença por escrito ao mestre de um navio francês “em que declarava que nenhuma dificuldade opunha pessoalmente ao nosso embarque. (…) Com isto nos ocultava uma traição; dera com efeito ao mestre uma caixinha embrulhada em pano encerado (por causa do mar) com cartas dirigidas a vários personagens, inclusive um processo em que, sem que soubéssemos, se pedia ao primeiro Juiz de França prender-nos e mandar-nos queimar como hereges. (…) Depois de carregado o ‘Jacques’ com pau-brasil, pimentão, algodão, bugios, saguis, papagaios e outras coisas da terra, que levavam os passageiros, partimos a 4 de janeiro de 1558. (…) Depois de andar vogando por espaço de sete a oito dias, atirados para um e outro lado por esse vento mau que nos prejudicava a marcha, verificou o marinheiro de quarto que entrava água pela popa do navio e conquanto lutassem com ela, fazendo mais de quatro mil zonchaduras (os que frequentam o oceano entendem bem este termo. (Zonchadura significa quando algo planejado sai do controle. Aqui pode ser rachaduras no casco do navio, com entrada de água sem poder estancá-la).

Cansados de tocar a bomba, desceu o ‘contra-mestre’ para verificar donde provinha a água e observou que jorrava em vários pontos com violência e com o peso da que havia nos porões o barco já não se governava e aos poucos afundava. É fácil imaginar a que ponto o fato nos apavorou quando fomos despertados e notificados do perigo. Este era tão evidente que, certos do naufrágio e sem esperanças de salvação, muitos já imaginavam morrer afogados. Quis Deus, entretanto, que alguns passageiros, e eu com eles, resolutos em defender a vida se tomassem de coragem e com duas bombas sustentassem o barco até meio-dia, ou seja, durante doze horas. A água entrava no navio com tanta abundância que as bombas não conseguiam esgotá-la e como ela encharcara o pau-brasil, que constituía a carga do navio, corria pelos canais vermelha como sangue de boi. (…) Entrementes o carpinteiro do navio, auxiliado por marinheiros, lutava sob o convés contra as fendas e trabalhava, com toucinho, chumbo, panos e outras coisas para tapar as mais perigosas e conseguiu finalmente quando não tínhamos mais forças para continuar a bombear.

O mar em torno da Ilha de Villegaignon com a vista do Pão de Açucar em 1550.

NAVIO VELHO E CARCOMIDO

Mas dizia o carpinteiro, após ter revistado o navio, que este era muito velho e a tal ponto carcomido que não lhe parecia com resistência suficiente para a viagem, sendo ele de opinião que voltássemos ao ponto de partida para tomarmos outro barco ou reconstruirmos o nosso. E tudo isso foi muito debatido. Objetou, porém, o mestre que se regressasse à terra os marinheiros o abandonariam; preferia, portanto, com muito pouco juízo, arriscar a vida a perder o barco com as mercadorias. Disse ainda que se o senhor Du Pont e demais passageiros quisessem regressar à terra lhes daria uma barca, ao que dito senhor Du Pont logo respondeu afirmando estar resolvido a continuar a viagem e aconselhou seus camaradas a fazerem o mesmo. Replicou o mestre que além do perigo da navegação, permaneceríamos no mar muito tempo e talvez não houvesse víveres bastantes para todos. Em vista dessas objeções eu e mais cinco companheiros decidimos voltar à terra dos selvagens, distante apenas nove ou dez léguas, já considerando a possibilidade o naufrágio, já a da fome.

Pusemos no bote alguma farinha de mandioca, bebidas e nossas roupas; mas ao nos despedirmos de nossos companheiros, um deles, penalizado com a separação e impelido pela amizade que me devotava, estendeu os braços para a barca e disse: ‘Peço-vos que fiqueis conosco, pois apesar da incerteza em que estamos e aportar em França, há mais esperanças de nos salvarmos do lado do Peru ou de qualquer outra ilha do que das garras de Villegaignon que, como podeis imaginar, nunca vos dará sossego’.

O momento não era para discursos e, atentando para suas observações, deixei na barca parte de minha bagagem e subi apressadamente para o navio, preservando-me assim do perigo previsto com acerto por esse amigo. Quanto aos outros cinco, que tinham por nomes Pierre Bourdon, Jean Bordel, Mathieu Verneuil, André Lafon e Jacques Leballeur, despediram-se tristemente de nós para o Brasil, onde aportaram com grandes dificuldades. Mas Villegaignon mandou matar os três primeiros, por divergências religiosas”.

 

PRÓXIMA EDIÇÃO 375 – JUNHO DE 2025 – PARTE 16.

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, os padres jesuítas José de Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam instigado o Governador-Geral Mem de Sá a prender Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”.  O jornalista e historiador paranaense José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933), em sua ‘História do Brasil’ publicada em 1935, recupera parte da história dos religiosos franceses: “Jacques Le Balleur foi poupado, pois era ferreiro. Isto praticamente marcou o fim da colônia francesa, e encerrou a tragédia da Guanabara”.