Naturalistas

A TRÁGICA VIAGEM DE VOLTA À FRANÇA

1 de julho de 2025

O naturalista e escritor Jean de Léry veio para o Rio de Janeiro com Nicolas Villegaignon. Chegou em fevereiro de 1557, conviveu com os índios Tupinambás, e volta para a França, em 1558. Viagem trágica: dois passageiros mortos pela fome foram lançados ao mar. “Quando um de nós apanhava um rato, julgava-se possuidor de coisa mais valiosa do que um boi em terra”.

Miguel Flori Gorgulho

Naturalistas Viajantes – Jean de Léry (Parte 17)

Jean de Léry (1534, Lamargelle, França – 1613, L’Isle, Suíça) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. É muito interessante e emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1557, as terras do Rio de Janeiro. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 17, Jean de Léry descreve jornalisticamente as peripécias da viagem de volta à França em maio de 1558.

A TRÁGICA VOLTA DE NAVIO

O naturalista Jean de Léry que entrou de gaiato no navio, veio para o Rio de Janeiro e conviveu com os índios Tupinambás, volta, em 1558, para a França.

O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão. Quando havia, repartíamos às colheradas esse farelo e com ele fazíamos uma papa preta e amarga como fuligem. Os que ainda tinham bugios e papagaios, a que ensinavam a falar, comeram-nos. E vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.

MAR AGITADÍSSIMO IMPEDIA ATÉ DE PESCAR

“Com o mar agitadíssimo, fomos obrigados não somente a ferrar todas as velas e a amarrar o leme, mas ainda, na impossibilidade de dirigir o barco, entregá-lo à discrição das ondas e dos ventos, o que nos impedia também, para nosso maior dano, de pescar um único peixe. Estávamos de novo expostos à fome e à mercê das águas. (…) Já estávamos, porém, tão magros e fracos, que mal nos podíamos suster de pé para as manobras do navio; mas a necessidade sugeria a cada um uma solução para encher o estômago e alguém se lembrou de cortar rodelas do couro do tapir e fazê-las ferver na água, imaginando que assim pudessem ser comidas; mas a receita não foi julgada boa. Outros, porém, que também davam tratos à bola, lembraram-se de assar essas rodelas na brasa. Depois de tostadas, rasparam a parte queimada e isso deu tão bom resultado que os que a comiam declaravam que pareciam torresmos. Depois dessa experiência, quem tinha rodelas as guardava e como eram duras como couro seco de boi, foram cortadas em pedaços com foices e outras ferramentas e os que as possuíam escondiam-na cuidadosamente em pequenos sacos de pano, pois davam-lhes tanta importância quanto aos escudos dão entre nós os usurários. E tal qual os sitiados de Jerusalém, que segundo Flávio José se alimentavam com as correias de couro de seus broquéis, chegaram alguns entre nós a comer suas gravatas de marrojim e as solas dos seus sapatos. Os grumetes e pajens do navio, apertados pela fome, comeram todos os chavelhos das lanternas, que existem sempre em grande número nas embarcações, e todas as velas de sebo que conseguiram apanhar. Não obstante a nossa fraqueza, tínhamos que fazer um esforço repetido para tocar a bomba, sob pena de irmos ao fundo e bebermos mais que tínhamos a comer”.

MORTOS PELA FOME ERAM

LANÇADOS AO MAR

“A 12 desse mesmo mês (maio), o nosso artilheiro morreu de fome, depois de ter comido as tripas cruas de seu papagaio, e foi como os outros lançado ao mar. Pouco sentimos a sua falta, pois estávamos tão extenuados que daríamos graças a Deus caso fôssemos apresados por qualquer pirata que nos desse de comer. Mas Deus quis afligir-nos durante toda a viagem de regresso e somente um navio foi por nós avistado, mas não nos pudemos aproximar porquanto a nossa fraqueza nos impedia de erguer as velas. Nessas alturas, vindo a faltarem as rodelas e até os couros da cobertura dos baús, e tudo mais que no navio podia alimentar-nos, pensamos ter chegado ao termo de nossa viagem. Mas a necessidade, que tudo inventa, lembrou a alguns a caça aos ratos e ratazanas que, também mortos de fome por lhe termos tirado tudo que pudessem roer, corriam pelo navio em grande quantidade. Foram tão perseguidos por meio das mais engenhosas ratoeiras e tão espreitados por olhos vigilantes como os de gatos, que mesmo à noite, ao clarão da lua, por mais escondidos que estivessem não escapavam vivos. Quando um de nós apanhava um rato, julgava-se possuidor de coisa mais valiosa do que um boi em terra.

Vi venderem-se a três e quatro escudos, e tendo o nosso barbeiro apanhado dois de uma vez recusou a oferta de um companheiro que lhe prometera vesti-lo dos pés à cabeça no primeiro porto; mas ele preferira a vida às roupas. Tivemos que cozinhar camundongos na água do mar, com intestinos e tripas, e dava-se as estas vísceras maiores apreço do que ordinariamente damos em terra a lombos de carneiro. E para mostrar que nada perdíamos, contarei o seguinte caso: Tendo o nosso contramestre cortado as quatro patas de um grande rato para cozinhá-lo, logo apareceu quem as apanhasse no convés e as fosse assar apressadamente na brasa dizendo nunca ter provado mais saborosa asa de perdiz. Diante de tamanha penúria, teríamos com efeito tudo comido, tudo devorado. Para saciar-nos, até ossos velhos e outras imundícies que os cães tiram dos monturos nos serviam; e é certo que se tivéssemos capim, feno ou folhas de árvores também os comeríamos como animais.

PRÓXIMA EDIÇÃO 377 – AGOSTO DE 2025 – PARTE 18.

Em maio de 1558, a bordo de um navio sem mantimentos e sem água, Jean de Léry e outros companheiros sofriam demais. Diz ele: “Durante as três semanas que durou essa fome terrível, não tivemos notícia de vinho e nem de água doce; desta, de há muito racionada, só nos restava um pequeno tonel. Este, entretanto, era tão poupado que um monarca não teria entre nós maior porção do que qualquer outro, a saber, um pequeno copo por dia. A sede nos atormentava mais ainda do que a fome, por isso quando chovia estendíamos lençóis com um peso no centro para destilar a água da chuva, que era recolhida em vasilhas…”.