Naturalistas

DIÁRIO DE UMA AVENTURA DE UM ANO NO BRASIL DE 1557

1 de agosto de 2025

Jean de Léry chegou ao Brasil em 10 de março de 1557 e voltou para França em maio de 1558. A viagem de volta foi uma tragédia. A penúria no navio chegou a tal ponto que o comandante já pensava em sortear alguém, sem aviso, para servir de alimentação dos outros.

Miguel Flori Gorgulho

Naturalistas Viajantes – JEAN DE LÉRY (PARTE 18)

Jean de Léry (1534, Lmargelle, França – 1613, L’Isle, Suiça) é aquele que entrou de gaiato no navio, ao acreditar na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon, embarcando em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. Léry chegou ao Brasil em 10 de março de 1557 e retornou à França em maio de 1558. É muito interessante e emocionante ler o primeiro relato jornalístico de um intelectual europeu sobre os índios brasileiros que habitavam, em 1557, as terras do Rio de Janeiro. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso. Nesta Parte 18, Jean de Léry descreve jornalisticamente as peripécias da viagem de volta à França.

A volta de Jean de Léry para a França foi uma tragédia. Os 15 passageiros salvaram-se por milagre. Dois morreram e foram atirados ao mar. “O erro do piloto em calcular a posição do navio “fez com que em fins de abril já estivéssemos inteiramente desfalcados de todos os víveres; já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos navios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão”. Os quase náufragos comeram até os bichos de estimação que levavam. Até os papagaios que começavam a falar, e eram a estimação dos franceses que conviveram com os índios Tupinambás, foram devorados. Faltavam por completo os víveres. “Em princípio de maio, dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe”.

PENÚRIA EXTREMA A BORDO

Diante de tamanha penúria, teríamos com efeito tudo comido, tudo devorado. Para saciar-nos, até ossos velhos e outras imundícies que os cães tiram dos monturos nos serviam; e é certo que se tivéssemos capim, feno ou folhas de árvores também os comeríamos como animais. Mas não é tudo. Durante as três semanas que durou essa fome terrível, não tivemos notícia de vinho nem água doce; desta, de há muito racionada, só nos restava um pequeno tonel. Este, entretanto, era tão poupado que um monarca não teria entre nós maior porção do que qualquer outro, a saber, um pequeno copo por dia. A sede nos atormentava mais ainda do que a fome, por isso quando chovia estendíamos lençóis com um peso no centro para destilar a água da chuva, que era recolhida em vasilhas, mas também aproveitávamos o enxurro do convés e, embora este fosse mais escuro do que alcatrão, por causa da sujeira dos pés, e mais imundo do que o das sarjetas, nem por isso o deixávamos de beber”.

24 DE MAIO DE 1558: TERRA A VISTA…

“A 24 de maio de 1558 tivemos diante de nós as terras da baixa Bretanha, quando, estendidos no convés, já quase não nos podíamos mexer. Como muitas vezes já o piloto nos havia enganado, tomando por terra nuvens que se desvaneciam, ao gritar o marinheiro de vigia no cesto da gávea: ‘Terra, terra’ julgamos ser um gracejo, mas o vento propício nos permitiu verificar logo que não se iludia. (…) Foi quando nos disse o mestre do navio, em voz alta, que, se tal situação tivesse perdurado mais um dia, estava decidido não a lançar sortes, como em tal circunstância praticam os comandantes dos barcos, mas a matar um de nós sem aviso para a alimentação dos outros. Isso não me assustou de modo algum, pois embora não houvesse a bordo nenhum indivíduo gordo, não me teriam escolhido, a menos que quisessem comer apenas pele e ossos”.

 

SALVOS POR PESCADORES

“Ao chegarmos a duas ou três léguas da terra da Bretanha, o mestre, juntamente com o senhor Du Pont e algumas outras pessoas, deixou-nos fundeados e dirigiu-se para um lugar vizinho a fim de comprar víveres. A dois dos meus companheiros que também se meteram nos escaleres, dei dinheiro para me trazerem refresco; mas apenas se viram em terra esqueceram a fome do navio e abandonando tudo quanto tinham a bordo, desapareceram sem que jamais os tornasse a ver. Entrementes, aproximaram-se alguns pescadores aos quais pedimos víveres; julgaram eles que zombávamos, ou valeram-se desse pretexto, e quiseram afastar-se. Mas fomos mais ligeiros do que eles e, forçados pela necessidade, nos arrojamos ao barco com tal ímpeto que imaginou tratar-se de salteadores. Nada lhes tiramos, entretanto, contra a vontade e, aliás, só havia no barco alguns pedaços de pão preto. Entretanto, apesar da penúria extrema que revelávamos, em vez de compadecer-se de nós não teve dúvida um dos miseráveis em receber de mim dois reais por um pedaço de pão que na terra não valeria um ‘liard’. Voltou, porém a nossa gente com pão, vinho e outras provisões e nada disso mofou nem azedou, como é de imaginar”.

“Alguns que se encontravam perto do nosso navio, ajudaram-nos em terra a suster-nos e, sabendo dos nossos sofrimentos, acertadamente nos aconselharam a não comermos em demasia e a começarmos pouco a pouco por caldos de galinha bem cozida, leite de cabra e outras coisas destinadas a alargarem as tripas que tínhamos muito contraídas. Os que assim procederam deram-se bem, mas quanto aos marinheiros que logo no primeiro dia se quiseram fartar, dos vinte escapados da fome, boa metade, creio eu, se empanzinou e morreu subitamente vítima de seus excessos.  Dos quinze passageiros, que como disse no capítulo precedente, embarcaram no Brasil, nenhum morreu nem no mar nem na terra. Em verdade apenas salvávamos a pele e os ossos, e mais parecíamos cadáveres desenterrados. Em terra fomos possuídos de tal desgosto pelos alimentos que quanto a mim, ao sentir o cheiro do vinho que me ofereceram em casa numa taça, caí de costas sobre um baú fazendo pensar aos presentes que ia morrer de fraqueza. Por mais de dezenove meses não me deitara à francesa, como hoje se diz, mas quando me puseram no leito aconteceu o contrário do que afirmam, isto é, que quando nos acostumamos a deitar em cama dura não descansamos mais em colchão macio; dormi tão profundamente desta primeira vez que só despertei no dia seguinte ao nascer do sol”.

O SOFRIMENTO NÃO TERMINOU

A TRAIÇÃO DE VILLEGAIGNON

“Parecia que tivéssemos chegado ao fim de nossos sofrimentos. (…) Com efeito, Villegaignon, por ocasião de nosso regresso, entregara ao mestre do navio, sem que o soubéssemos, um processo organizado contra nós, com ordem expressa ao primeiro juiz a quem se apresentasse em França, não só de prender-nos, mas ainda de queimar-nos como hereges. Mas aconteceu que o nosso chefe, senhor Du Pont, conhecia algumas pessoas da justiça afeiçoadas à religião reformada. Aberta a caixa em que estava o processo, viram essas pessoas o que lhes era ordenado, mas, em vez de tratar-nos como desejava o nosso perseguidor, obsequiaram-nos com boa mesa, oferecendo recursos aos nossos companheiros necessitados e emprestando dinheiro ao senhor Du Ponto e outros”.

PRÓXIMA EDIÇÃO 378 – SETEMBRO DE 2025 – PARTE 19.

Duas curiosidades sobre Jean de Léry: Saiba o que tem a ver a Basílica de São Pedro, em Roma, com a viagem de Léry ao Brasil. E a lei no mar é como a lei em terra: o mais forte domina o mais fraco.