DUAS CURIOSIDADES SOBRE LÉRY
1 de setembro de 20251) O QUE TEM A VER A BASÍLICA DE SÃO PEDRO COM A VIAGEM DE JEAN DE LÉRY? 2) NO MAR É COMO EM TERRA: VALE A LEI DO MAIS FORTE QUE DOMINA O MAIS FRACO.
Naturalistas Viajantes – JEAN DE LÉRY – Parte 19
“Uma vez em terra, caminhei ao longo da Avenida Rio Branco,
onde uma vez existiram as aldeias tupinambás;
no meu bolso havia aquele breviário do antropólogo, Jean de Léry.
Ele chegou ao Rio 378 anos antes, quase no mesmo dia”.
Claude Lévi-Strauss em ‘Tristes Trópicos’, ao chegar ao Rio de Janeiro em 1934.
Jean de Léry (Lamargelle-França 1534 – L’Isle, Suíça 1611) entrou de gaiato no navio. Para nossa sorte. Acreditou na balela do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) e embarcou em um dos navios franceses que vieram colonizar a porção Antártica da França. O relato que o artesão e futuro pastor calvinista deixou aos brasileiros é precioso e deveria ser leitura obrigatória em nossas escolas. Com a mesma competência, trabalhava o couro e as palavras. Os sapatos e botas que saíram de suas mãos não mais existem, mas suas aventuras e observações estão eternizadas em um livro que deve ser obrigatório em qualquer biblioteca.
Lévi-Strauss assim se refere a Léry: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘sobre-realidade’, não aquele de que falam os surrealistas, mas uma realidade ainda mais real do que aquela que testemunhei. Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas e porque foi a quatrocentos anos”.
O QUE TEM A VER A BASÍLICA DE SÃO PEDRO COM O BRASIL?
Essa é uma história interessante e verdadeira. Que sequência de eventos poderia associar a reconstrução da Basílica de São Pedro em Roma pelo papa Leão X, nos primórdios do século XVI, com a vinda de Léry para o Brasil? Simples assim: Leão X encarregou um padre católico para arrecadar fundos para a reforma da basílica com a venda de indulgências na Alemanha. Indulgências são o perdão parcial ou total dos pecados. O mote do padre encarregado das vendas era: “Assim que uma moeda tilinta no cofre, uma alma sai do Purgatório”.
Martinho Lutero (1483-1546), monge católico e teólogo alemão, se revolta com a comercialização do que acredita ser um atributo divino, rompe formalmente sua obediência às leis papais e propõe a reforma religiosa.
O humanista francês João Calvino (1509-1564) adere à Igreja Reformada ou Protestantismo e leva além o conceito. O oportunista Villegaignon percebe nos conflitos religiosos deflagrados a oportunidade de colonizar sua sonhada França Antártica. O nobre francês Gaspar de Coligny acredita na proposta e solicita a Genebra religiosos reformados para preparar terreno ao que seria o reduto de milhares de protestantes perseguidos na Europa. E do grupo, quem faz parte Justamente um estudante de teologia chamado Jean de Léry, “que, tanto pela vontade de servir a Deus, como curioso de ver terras novas, me decidi a fazer parte da comitiva do poderoso Nicolas Durand de Villegaignon em direção ao Rio de Janeiro”.
ORIGINAIS DO LIVRO DE LÉRY
Não foi preciso muito esforço dos portugueses para colocar fim ao empreendimento. As tensões internas e a inconstância de Villegaignon praticamente volatizaram a possibilidade da Cidade Maravilhosa e a Cidade Luz coexistirem nos trópicos. Mas isso seria covardia com o resto do mundo! Talvez assim Lévi-Strauss não achasse os trópicos tão tristes.
Por pouco o livro de Léry não chega até nós. Solícito aos amigos que viam a importância de seu depoimento, Léry coordena suas anotações, escreve um documento e encaminha para publicação. O desastrado portador perde os originais e Léry refaz de memória o livro, que é novamente perdido em meio aos conflitos religiosos. Um nobre francês, que desconhecemos o nome e a quem devemos eterna gratidão, não se conforma e investe seu prestígio para reencontrar o primeiro original, que é então publicado com 20 anos de atraso.
Há vários séculos o livro de Léry coleciona leitores de prestígio como os pensadores Michel de Montaigne (1533-1592), que se inspira em um trecho em seus ‘Ensaios’, e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Nos capítulos iniciais, Léry descreve “do motivo que nos levou a empreender tão penosa viagem”. Relata a partida das três naus da Normandia em novembro de 1556 e as ações de pirataria e covardia dos marinheiros franceses: “Neste primeiro encontro vi que no mar é como em terra: o mais forte domina e dá leis ao mais fraco”.
Não esquece um fato curioso que testemunha e faz questão de registrar. A dança da ‘selha’, que é uma espécie de gamela: “Contarei ainda uma coisa notável. Durante essa tempestade que durou quatro dias, o nosso cozinheiro pusera pela manhã toucinho numa selha de madeira para dessalgar; veio uma rabanada de onda e lançou a selha ao mar, à distância de um tiro de dardo; outra vaga, porém, vinda em sentido contrário, trouxe outra vez a vasilha ao convés, sem que no ir e vir se entornasse o conteúdo, o que nos restituiu o jantar que havia ido por água abaixo…”
“VIAGEM À TERRA DO BRASIL’
O livro ‘Viagem à Terra do Brasil’, escrito por Léry, consta do catálogo da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte. Léry anota um ‘Colóquio de Entrada ou Chegada ao Brasil, entre a Gente do País Chamada Tupinambá e Tupiniquim, em Linguagem Brasílica e Francesa’, seguido de observações gramaticais, restaurado, traduzido e anotado pelo filólogo paulistano Plínio Ayrosa (1895-1961). O professor Ayrosa, ex-professor de Etnografia e dialeto tupi-guarani da USP, considerava de enorme interesse e importância esse colóquio, que é apresentado como o capítulo final do livro.
Em 1564 Léry foi nomeado ministro religioso. Durante os conflitos religiosos que ocorreram na França, a pequena cidade de Sancerre se manteve fiel à Igreja Reformada e foi sitiada pelos católicos, em 1573. Léry encontrava-se na cidade e sua experiência mostrou-se útil. Ensinou os guardas a usarem as redes brasileira, que permitiam o repouso sem abandonar as armas e mostrou aos sitiados como atenuar a fome mediante o cozimento do couro de seus calçados. Em seu livro, Léry ainda afirma que “embora a fome sofrida durante o sítio de Sancerre, em 1573, deva ser colocada entre as mais terríveis de que jamais se ouviu falar, como se pode ver em minha narrativa impressa, não foi ela tão rigorosa como a de que aqui se trata: pois em Sancerre não só não nos faltou água nem vinho, como ainda sempre tivemos algumas raízes, ervas silvestres, rebentos de videiras e outras coisas que a terra dá. (…) Devo declarar agora que se viesse a ser assediado em defesa de uma boa causa jamais me renderia pela fome, enquanto houvesse cabeções de couro de búfalo, vestes de camurça ou outras coisas em que exista suco ou umidade”.
Após os eventos de Sancerre, Léry se exilou na Suíça e morreu em Berna em 1611, aos 77 anos.
PRÓXIMA EDIÇÃO 379 – OUTUBRO DE 2025 – PARTE FINAL.
CONCLUSÃO E FINAL DA VIDA DE JEAN DE LÉRY – “Para cúmulo de misérias, ao chegarmos a Nantes tivemos os sentidos transtornados por completo e passamos quase oito dias com o ouvido ao duro e a vista tão ruim, que pensei ficar surdo e cego. Todavia, excelentes médicos e notáveis personalidades que continuamente nos visitavam, com tanto cuidado nos trataram que, quanto a mim, cerca de um mês mais tarde já tinha a vista e o ouvido perfeitos. O recado de Léry era simples: Se alguém queria ver selvageria, não era preciso sair da Europa. E concluía dizendo que, não fora o que chamava de “traição de Villegaignon”, o Brasil teria sido seu lar para sempre.