A bio-insegurança e os transgênicos
2 de fevereiro de 2004A edição número 131 da Folha do Meio Ambiente, na página 15, traz um “Ponto de Vista” sobre os “Transgênicos e a segurança alimentar”, assinado por dois técnicos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Diante das colocações feitas, o texto merece reparos. O artigo dá a entender que o Governo FHC, através da Comissão Técnica… Ver artigo
A edição número 131 da Folha do Meio Ambiente, na página 15, traz um “Ponto de Vista” sobre os “Transgênicos e a segurança alimentar”, assinado por dois técnicos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Diante das colocações feitas, o texto merece reparos.
O artigo dá a entender que o Governo FHC, através da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), e graças a uma complexa burocracia, mantém sob controle a questão da biossegurança no país. Isto não é verdade. Técnicos do Ministério da Agricultura já declararam que não há pessoal suficiente para fiscalizar a pesquisa e muito menos a comercialização no Brasil. Por causa desta falha central, fundamental, é sabido que o país tem hoje plantios de soja transgênica contrabandeada – estima-se que 30% do que se planta nos estados do Sul. O fato revela a omissão ou incompetência dos órgãos que deveriam zelar pela biossegurança.
O caso da soja Roundup Ready (RR), citado no “Ponto de Vista”, é exemplar quanto à atuação da CTNBio. O texto na Folha do Meio diz que “houve a conclusão favorável da CTNBio após três anos de estudos experimentais”. Na verdade, isto é meia verdade. Os estudos experimentais foram feitos pela própria empresa, a Monsanto, que solicitava sua liberação no Brasil. Ou seja, a comissão aprovou a liberação da RR baseada no que dizia a Monsanto!
Também não é uma verdade por inteiro afirmar que a Instrução Normativa da CTNBio que liberou a RR estabelece “procedimentos… para a liberação planejada no meio ambiente e o plantio comercial”. Na verdade, esta norma estabelece que estudos serão realizados enquanto se produz e se comercializa a RR. Em outras palavras, a população e o meio ambiente brasileiro serão feitos cobaias de um experimento da Monsanto. E tem mais: a mesma instrução diz que tais estudos serão feitos pela própria Monsanto – a dona do negócio é que fiscaliza o negócio.
A comissão aprovou a produção, transporte, armazenamento e comercialização da soja RR no país, sem que existisse um só estudo sobre os efeitos da soja no meio ambiente no Brasil. Pior, a CTNBio aprovou a comercialização da soja RR sem que existisse um só estudo sobre os seus efeitos (ou de outros transgênicos) sobre a saúde humana ou de animais!
A prudência e a responsabilidade recomendariam de um órgão público responsável pela biossegurança do país que aguardasse estudos mais decisivos sobre os efeitos dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) antes de liberá-los para o consumo humano. O transgênico não existe na natureza, é uma quimera feita em laboratório. O que ocorrerá ao organismo humano ou animal que o consumir? Não há resposta conclusiva hoje, e muito menos quando a CTNBio, há quatro anos, começou a liberar os primeiros produtos.
Os novos alimentos com OGMs serão consumidos por homens, mulheres e crianças. Talvez os efeitos sobre a saúde (alterações genótipas e fenótipas) demorem uma dezena de anos para se revelar. Mas não podem ser desconsiderados. A CTNBio foi imprudente ao liberar estes produtos sem uma avaliação precisa dos riscos. Tanto que foi preciso uma intervenção da Justiça, vedando a liberação dos OGMs, para evitar o que poderia resultar numa futura catástrofe nacional.
É sabido que os principais interessados nos transgênicos são as empresas fabricantes de produtos OGMs. A soja RR, por exemplo, tem somente um fabricante mundial, a Monsanto, que pretende monopolizar o mercado mundial. A propaganda de que eles pretendem acabar com a fome no mundo é falsa – afinal, o problema da fome não é a produção de alimentos, mas recursos para comprar comida e a falta de políticas nacionais que privilegiem a produção e abastecimento interno e não para fora, como é hoje. Em 1950, Josué de Castro, dirigente da FAO, já denunciava isto.
Trata-se, portanto, de uma questão de mercado, e não de ciência e tecnologia. O mercado quer impor os alimentos transgênicos e utiliza todos os argumentos disponíveis. Mas o que está em jogo é algo muito mais sério – é uma proposta de mudança na alimentação humana, com intervenções no meio ambiente, para algo que ninguém sabe ainda o que é. Talvez só se saiba daqui a 50 anos (como foi o caso do DDT). Portanto, é preciso haver um grande debate nacional sobre o tema. E quem tem que decidir se o Brasil deve ou não produzir e consumir este tipo de alimento é a população de uma forma geral. Não podemos ser ingênuos ao ponto de permitir que o governo, faça isto. E muito menos os cientistas, tecnocratas, agricultores, ou as empresas fabricantes de OGMs. Um grande debate é necessário.
Agora, se dois funcionários públicos escrevem na Folha do Meio que o consumo da soja Roundup Ready “não determina riscos” à saúde humana e de animais, sem ter uma prova definitiva disso, então a questão é grave. Por isso faço o desafio:
Que Simone H. Scholze e Márcio Antonio Matarazzo, assumam publicamente neste jornal a responsabilidade por terem recomendado ao leitor a produção e o consumo de um produto geneticamente modificado. Que assumam a responsabilidade civil e penal pelos danos que tais produtos possam causar aos seres humanos, aos animais e ao meio ambiente.
(*)Dioclécio Luz é jornalista e escritor, autor,
em parceria com Sebastião Pinheiro, do livro
“Ladrões de natureza – uma reflexão sobre a biotecnologia e o futuro do planeta”