Brasil: com quantos paus se fez uma nação?

Árvore-símbolo agoniza

3 de março de 2004

Simone Silva Jardim – de São PauloÉ no mínimo constrangedor constatar que a árvore que deu nome ao País, o pau-brasil, esteja em perigo de extinção e só tenha sido contemplada com escassas – e às vezes equivocadas ou mal escritas – linhas nos manuais didáticos. Seria esta mais uma irrefutável prova da crônica amnésia… Ver artigo


Simone Silva Jardim – de São Paulo
É no mínimo constrangedor constatar que a árvore que deu nome ao País, o pau-brasil, esteja em perigo de extinção e só tenha sido contemplada com escassas – e às vezes equivocadas ou mal escritas – linhas nos manuais didáticos. Seria esta mais uma irrefutável prova da crônica amnésia com que tratamos nossos mais cruciais eventos históricos? Ou essa pouca prosa com o ilustríssimo Caesalpinia echinata (este é o nome científico do pau-brasil) teria por trás “forças ocultas”, como a de manter nebuloso um importante elo para compreendermos um pouco mais as origens da frágil cidadania e omissões do Brasil contemporâneo?


O livro recém lançado Pau-brasil (Axis Mundi Editora, 280 páginas) provoca essa e muitas outras reflexões. É uma daquelas raras obras que proporcionam uma viagem simultaneamente prazerosa e aguda a um momento crucial do passado do País, o do ciclo econômico do pau-brasil. O jornalista e escritor Eduardo Bueno, organizador do trabalho que reúne artigos assinados por um time de especialistas de renome internacional, diz que o pau-brasil deve ser visto como uma metáfora da identidade política, social e cultural do país.


“Em nenhum momento de nossa história – Colônia, Império ou República – os brasileiros puderam ter acesso ao pau-brasil para uso prático, estudos botânicos ou desfrute estético. É uma espécie que, de certo modo, foi ‘seqüestrada’ do convívio do povo. É a imagem de uma riqueza que sempre foi nossa e nunca pôde ser nossa”, destaca Bueno.


Essa histórica situação de “privação de direitos” sofrida pelos habitantes da Terra Brasilis contrasta com outra surpreendente faceta do pau-brasil. A árvore, pertencente à família das leguminosas, é apontada como “semente” do ideário libertário europeu. Explica-se. O historiador francês Jean-Marc Montaigne, autor do capítulo O índio ganha relevo, relata que os franceses que vinham traficar o pau-brasil ao conhecerem o modo igualitário de vida dos indígenas, mudavam por completo sua maneira de ver o absolutismo, até então tido como natural e imutável.


Morte anunciada
Objeto de intensa cobiça, o chamado pau-de-tinta ou lenho tintorial, de um vermelho-sangue que inflava a vaidade e distinguia as vestimentas dos poderosos e, ao mesmo tempo, fazia tombar milhares de corpos nas florestas, foi também o primeiro e mais colateral monopólio estatal da história do Brasil – prolongou-se por três séculos e meio, de 1502 a 1859.


É revelador o episódio datado de 5 de março de 1605, em que o rei Felipe lll, um jovem com 27 anos que comandava os reinos unidos de Portugal e Espanha, ordena por carta enviada ao bispo do Brasil, dom Pedro de Castilho, que “por todas as formas se evitasse a devassidão com que o lenho tintorial estava sendo explorado”.


Pelo visto, o decreto não surtiu qualquer efeito sobre a ganância mercantilista, pois o pau-brasil transformou-se em poucas décadas na primeira espécie vegetal ameaçada de extinção. Vale lembrar que a árvore é espécie própria do bioma Mata Atlântica, que na época do descobrimento recobria mais de 1,3 milhão de km2, cerca de 15% do território brasileiro e hoje restringe-se a menos de 8% de sua cobertura original.


Só a Mata Atlântica tem polinizador correto para multiplicação do pau-brasil
Gwilym P. Lewis: “Não basta querer plantar o pau-brasil para preservá-lo isoladamente se essa decisão estiver fora de seu contexto natural. É preciso que as pessoas primeiro cuidem da floresta que lhe dá vida”


O botânico escocês Gwilym P. Lewis, do Royal Botanic Gardens, situado nos arredores de Londres, co-autor do artigo Pau-brasil – uma biografia, em entrevista exclusiva à Folha do Meio Ambiente ressalta que a espécie só existe no Brasil.


“Seu habitat natural é a Mata Atlântica, onde pode alcançar até 20 metros de altura e 70 centímetros de diâmetro. É uma espécie muito antiga e não pode ser simplesmente plantada em qualquer canto. Para assegurar a enorme multiplicidade genética da planta – que para se ter uma idéia apresenta sete formas diferentes de folha -, é indispensável que se preserve a Mata Atlântica.


Só este bioma tem o polinizador correto para assegurar a sobrevivência da árvore, caso contrário ela morre. Portanto, não basta querer plantar o pau-brasil isoladamente para preservá-lo se essa decisão estiver fora de seu contexto natural. É preciso que as pessoas primeiro cuidem da floresta que lhe dá vida”, destaca Lewis.


Autor de dois artigos do livro, o botânico brasileiro Haroldo Cavalcante de Lima lembra que esforços para a preservação ficam muito prejudicados pela inexistência, no país, de informações precisas sobre a espécie.


“Os registros botânicos confiáveis da ocorrência natural de pau-brasil não representam um quadro real da atual distribuição da espécie. Novos estudos precisariam ser desenvolvidos para confirmar, com base em pesquisas de campo, os locais onde se encontram os remanescentes mais representativos da espécie. Também seria fundamental inventariar as populações naturais existentes. Mas ainda não há verbas nem programas oficiais que prevejam essas ações, fundamentais para a preservação da árvore-símbolo do Brasil”, comenta Cavalcante de Lima.


A árvore da tinta, da música e da cura
O certo seria identificar os habitantes nascidos no Brasil com o termo “brasiliense”, já que “brasileiro” era expressão que servia para designar tão-somente os que se dedicavam ao tráfico do pau-brasil.


A Portaria 113/95 do Ibama autoriza a derrubada do pau-brasil somente em casos especiais. Entretanto, a extração ilegal por fazendeiros, madeireiros e lenhadores é hoje feita em velocidade alarmante.


Para azar da espécie e alegria de seus salteadores, a madeira tem a admirável qualidade de produzir os melhores arcos de violinos do mundo. Também tem despertado crescente interesse o uso medicinal da espécie. A casca cozida é utilizada para combater diarréias; reduzida a pó, serve para limpar e fortalecer as gengivas. “Embora as pesquisas ainda estejam na fase dos testes, o extrato do pau-brasil poderá se revelar um agente eficaz no combate ao câncer de acordo com o trabalho realizado na Universidade Federal de Pernambuco.


Mas nada disso parece ter um impacto suficientemente forte para deflagrar uma sólida campanha nacional em prol da preservação do pau-brasil”, destacam Bueno e Lima no epílogo do livro.


Brasiliense
Passados 500 anos, é seguro afirmar-se que tiramos pouca ou nenhuma lição do ciclo econômico do pau-brasil. Afinal, continuamos a lidar com as dádivas proporcionadas por nossas florestas tropicais com o mesmo inescrupuloso oportunismo, ineficiência, ignorância e omissão.


Talvez essa conduta historicamente desonrosa explique porque, até hoje, não fincamos pé firme para que a correta norma gramatical fosse aplicada entre nós, pois o certo seria identificar os habitantes nascidos no Brasil com o termo “brasiliense”, já que “brasileiro” era expressão que servia para designar tão-somente os que se dedicavam ao tráfico do pau-brasil.