Poço artesiano Abrir poço nem sempre é solução para seca

25 de março de 2004

Durante o final do ano passado e até o momento uma das notícias que mais tem sido comentada pela imprensa é a da falta de água nas áreas agrícolas e até nas cidades. O fantasma da seca volta a atacar o Sul do Brasil e especialmente o Rio Grande do Sul. Desta vez ninguém pode… Ver artigo




Durante o final do ano passado e até o momento uma das notícias que mais tem sido comentada pela imprensa é a da falta de água nas áreas agrícolas e até nas cidades. O fantasma da seca volta a atacar o Sul do Brasil e especialmente o Rio Grande do Sul. Desta vez ninguém pode dizer que foi pego desprevenido. As previsões apontavam claramente a insuficiência de precipitações em períodos críticos para as lavouras de verão, como a soja, o milho, o arroz e para as pastagens. A ciência e os técnicos da área colocaram à sociedade um quadro de carência de água, muito antes do início da seca. O que fizeram os governos para antecipar-se ao problema?


Por muitos anos o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná têm criticado a indústria da seca no Nordeste, com suas frentes de trabalho, frotas de caminhões pipa, faraônicos projetos de irrigação e incontáveis perfurações de poços artesianos.


Mas e nós, os gaúchos e os irmãos catarinenses e paranaenses que dizemos conhecer profundamente a agricultura, o que temos feito?


A seca não é desconhecida para nós. Todos os anos temos pequenas perdas por secas e em alguns anos temos sofrido seríssimas perdas na produção de grãos, na produção de carne bovina e de leite e até temos assistido a cenas de caminhões pipa abastecendo cidades, assim como muitas cidades tem enfrentado longos períodos de racionamento de água. 


Qual tem sido a reação dos governos estaduais e dos prefeitos diante deste quadro de carência de água em determinados períodos do ano? Em meio a seca ou até depois dela, a “grande” solução tem sido abrir poços artesianos. A população vê as máquinas trabalhando, tira-se fotos do poço jorrando água, distribui-se notícias para a imprensa sobre as ações emergênciais e o problema fica “resolvido” até a estação das chuvas e o próximo verão.


Abrir poço artesiano não é solução para combate à seca. É ação própria de sociedades que improvisam soluções caras, não só pelo custo imediato, mas porque são provisórias. O sul do Brasil não é o sertão nordestino. Então, por que buscar água no subsolo em vez de aproveitar a água da chuva, que não custa nada e que não sabemos ou que não nos importamos em conserva-la na superfície do solo? Por que deixá-la correr totalmente para os rios e após para o mar? Por que, além de perde-la, polui-la? Não é mais barato um grande programa de açudes, de tecnologias de conservação do solo e da água nas lavouras, que poços artesianos? Além do mais, poço artesiano também seca, além de poder ser contaminado devido a resíduos biológicos ou químicos, como excesso de nitrogênio. Solução cara e passageira. As companhias estaduais de abastecimento de água, como a CORSAN no Rio Grande do Sul, tem dados sobre poços que secaram em suas áreas de captação. Nos países industrializados europeus já há vastas áreas de águas subterrâneas contaminadas por agentes químicos ou por dejetos animais, como de suínos e de gado bovino. 


A mesma sociedade que comenta o crescente desmatamento nos seus estados, não tem consciência ou não quer agir no sentido de implantar sérios programas de reflorestamento. Nos governos devem haver vários. Só no papel. As ONGS têm concentrado sua ação em outras áreas que chamam mais a atenção do público e praticamente esqueceram ações que visem a forçar o poder público e a sociedade para reflorestar as áreas agrícolas. 


Alguém conhece um meio mais barato de armazenar água que o complexo solo-planta de uma floresta? Assim como a criança é gerada na barriga da mãe, a natureza usa o complexo florestal para “gerar” água. Matem a mãe, a floresta, e desaparecerá a maioria da vida nesta casa chamada planeta Terra.


A sociedade tem sido informada que a irrigação é a grande solução para a agricultura. Como se todos tivessem um rio farto em água todo o ano ou se bastasse abrir um poço artesiano e conectá-lo com um equipamento de irrigação. A minoria até pode ter uma destas soluções. Basta ter dinheiro para o projeto. E a maioria, constituída de pequenos agricultores? Sem dinheiro, sem rio por perto, sem açudes, e que, além disso, planta em áreas com grande declividade, de difícil irrigação


Antes de um grande programa de poços artesianos para abastecimento das cidades ou para irrigação, precisamos nos preocupar com a preservação da pouca água disponível no verão e planejar o armazenamento da água das chuvas de inverno e de verão. Programas sérios de reflorestamento como da Cooperativa Tritícola de Erechim- COTREL, no Rio Grande do Sul, com 1.000.000 de mudas por ano distribuídas entre seus associados, são exemplos da força da ação comunitária, independente dos governos, que busca soluções permanentes. A formação de bosques nas pequenas propriedades, em seu conjunto provocará a elevação dos lençóis freáticos, que por sua vez permitirão o aumento de volume de água nos córregos. Conseqüência: água para projetos de irrigação. O lucro indireto será a disponibilidade de madeira reflorestada, o que dispensará o corte das matas nativas, além da volta de espécies animais neste novo habitat.


Outro fator que deve ser considerado é a liberdade do uso da água. A água não é um bem de acesso irrestrito. Não se pode simplesmente colocar uma bomba de irrigação na beira do rio ou em um poço artesiano e tirar o quanto se quer. É um bem de uso coletivo, que depende de organismos ambientais nos estados. Tanto das águas da superfície como nas do subsolo.


O uso da água no Brasil deverá ser regulado pela lei que cria a Agência Nacional de Águas (lei 1.617/99) e no estado do Rio Grande do Sul seu uso está regulamentado pela lei 10.350 de 31 de dezembro de 1994, denominada “Lei da Águas”. Esta lei prevê a instalação de 25 Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas, que nas suas áreas de ação terão a responsabilidade de dizer como a sociedade, de cada bacia, quer utilizar este bem escasso. Será a comunidade de cada Bacia, sob supervisão do governo estadual, que definirá como a água será utilizada e se serão ou não cobradas tarifas. Tarifas que poderão ser decrescentes a medida em que o insumo água for sendo aproveitado da melhor forma possível.


Obviamente não se pode simplesmente proibir a abertura de novos poços artesianos. Por outro lado não se pode continuar, todos os anos, a assistir os mesmos problemas de escassez de água, que se agravam a cada ano, como se vivêssemos num destes países africanos com clima de deserto e sociedades ainda na fase de tribos. Afinal, nos orgulhamos de ser gaúchos, catarinenses, paranaenses. De nossas culturas e de nossa tecnologia agrícola. 


Em vez de continuarmos a nos lamentar, deveríamos iniciar um movimento coletivo de preservação de água. Poderíamos começar “proibindo” a água de poços artesianos nas cidades e nas áreas rurais e preservando melhor esta imensa riqueza que não estamos valorizando: a água da chuva, que corre livre na superfície do solo. Deixemos a água armazenada no subsolo para nossos descendentes. Se já criamos a consciência que a terra deve ser preservada para as futuras gerações, porque não começamos a agir da mesma forma com a água do subsolo? 


* Roque G. Annes Tomasini é engenheiro agrônomo: M.Sc. Economia Rural, Embrapa Trigo, pesquisador na área de economia ambiental, prof. Fac. Agronomia da U. Passo Fundo-RS