Ponto de Vista

Por uma nova ética no uso da água

25 de maio de 2004

A dificuldade de acesso à água potável, neste início de século, está nos forçando a repensar nossos conceitos de estabilidade, dependência e responsabilidade, assim como nossa percepção sobre a sustentabilidade do planeta e das futuras gerações. Nos últimos anos, começamos a afastar o falso mito da inesgotabilidade dos recursos hídricos, construímos foros importantes de debate… Ver artigo


A dificuldade de acesso à água potável, neste início de século, está nos forçando a repensar nossos conceitos de estabilidade, dependência e responsabilidade, assim como nossa percepção sobre a sustentabilidade do planeta e das futuras gerações. Nos últimos anos, começamos a afastar o falso mito da inesgotabilidade dos recursos hídricos, construímos foros importantes de debate e demos os primeiros passos para assumir um compromisso global para lidar com o problema. Falta-nos, contudo, agregar um componente ético capaz de dar unidade e sustentabilidade a essa mudança.
Mais de cinco milhões de pessoas continuam morrendo anualmente com doenças causadas pela contaminação da água e pela falta de saneamento e de água para fins de higiene. Há hoje 1,5 bilhão de pessoas sem acesso à água potável e 2,9 bilhões – cerca de metade da população mundial – sem serviços sanitários básicos. Uma das metas do milênio estabelecidas pela ONU, em 2000, previa a redução pela metade da população mundial sem acesso à água doce e potável até 2015. Para isso, seria necessário levar água encanada a mais de 300 mil pessoas por dia e saneamento básico a mais de 500 mil. A meta não será cumprida. Ao contrário, espera-se que até lá dezenas de milhões de pessoas tenham morrido, incluindo uma média de seis mil crianças por dia.
Declaração Coletiva da ONU lançada em 1999 mostra, por outro lado, que o montante de recursos necessários para levar, até 2009, água e saneamento a baixo custo para quem não tem, equivale ao que se gasta por ano na América do Norte e Europa apenas com alimentos para animais de estimação, enquanto nos países em desenvolvimento 90% das doenças continuam relacionadas à má qualidade da água. É o dilema ético, mais do que a escassez de recursos hídricos, que aflora e dá perversidade a esse debate.
Como trazer essa percepção ao nível das consciências individual e coletiva? Como fazer do reconhecimento do problema o primeiro passo para um novo pacto de desenvolvimento eqüitativo e socialmente mais justo? A resposta começa pela percepção de que os principais problemas com relação à água estão mais associados a problemas de distribuição e de conhecimento sobre seu uso do que propriamente a quantidades reduzidas desse recurso. Se tivermos em conta que não há vida sem água, e que àqueles a quem se nega a água nega-se também a vida, teremos estabelecido o ambiente ético e solidário sobre o qual devem se mirar todas as nossas ações.
Aprendemos, nestes primeiros anos de reflexão global sobre a água, a encará-la apenas como uma fonte de conflitos, apresentada em termos de catástrofe, escassez e contaminação, sem dar muita atenção ao fato de que esses conflitos reproduzem desigualdades sociais históricas. Precisamos estabelecer uma agenda positiva, capaz de racionalizar o uso da água e ajustar este desafio ético a suas dimensões políticas e econômicas, como instrumento de desenvolvimento e cooperação entre as nações.
Em termos de água para beber, para a irrigação e para a produção de energia, cerca de 40% da população mundial se aproveita de 214 sistemas hidrográficos partilhados por dois ou mais países.
A expectativa de que em 2015 quase 3 bilhões de pessoas – 40% da população projetada – vivam em países com dificuldades de garantir água suficiente para atender a agricultura, a indústria e as necessidades domésticas da população é, portanto, um problema transnacional, que exige a interdependência das políticas públicas de gerenciamento dos recursos hídricos e a cooperação estreita entre Estados e sociedade civil, tanto de países desenvolvidos como em desenvolvimento.
Dessa articulação pode surgir um novo sistema de valores, capaz de mostrar que não apenas a sobrevivência da humanidade depende da água, mas que também a conservação dos recursos hídricos e demais recursos naturais passa a depender de uma ação sustentável, coordenada e integrada de toda a humanidade.
Aceitar essa idéia é desde já lançar as bases para uma reflexão ética que transcende a própria questão dos recursos hídricos, uma vez que estimula laços de solidariedade e fraternidade que podem ser multiplicados em todas as esferas da vida social. A água, fonte da vida, nos dá hoje a oportunidade de promover essa discussão. Cabe a nós, literalmente, não desperdiçá-la.


?Nos últimos anos, começamos a afastar o falso mito da
 inesgotabilidade
 dos recursos hídricos. Falta-nos, contudo, agregar um
componente ético capaz de dar unidade e sustentabilidade a essa mudança?