Nas trilha do Himalaia

Tramontina: livro mostra uma fome insaciável pela natureza

23 de fevereiro de 2005

Em 1978, o jornalista Carlos Tramontina começou sua carreira de repórter em São Paulo, na TV Globo.  Por algum tempo cobriu a área de meio ambiente. Confessa que uma matéria que fez na floresta amazônica o deixou como a mais forte lembrança o incômodo de enfrentar, por dias seguidos, as doloridas ferroadas dos insetos. “Nas… Ver artigo

Em 1978, o jornalista Carlos Tramontina começou sua carreira de repórter em São Paulo, na TV Globo.  Por algum tempo cobriu a área de meio ambiente. Confessa que uma matéria que fez na floresta amazônica o deixou como a mais forte lembrança o incômodo de enfrentar, por dias seguidos, as doloridas ferroadas dos insetos. “Nas minhas férias e horas de lazer, nunca fui de acampar, dormir em barraca, descobrir cachoeiras ou cavernas. Ao contrário, sempre me hospedei em hotéis confortáveis”, conta. Mas tudo isso ficou no passado.
A viagem que Tramontina fez ao que ele carinhosamente chama de a “sua montanha”, o Island Peak, é uma experiência que relata  no livro que acaba de lançar, A morada dos deuses – Um repórter nas trilhas do Himalaia (222 páginas, Sá Editora). Não há dúvidas: esse paulista foi tomado de uma fome implacável por novas experiências e uma profunda integração com o meio ambiente.
“O frio e as montanhas geladas sempre exerceram sobre mim um enorme magnetismo. Acabei rompendo com meus próprios padrões ao fazer esta viagem de férias ao Nepal, sem minha família, por quase um mês. Acho que ter um contato com o meio ambiente dessa forma mais bruta e simples e, ao mesmo tempo absolutamente direta, faz com que a gente sinta e sofra os impactos da natureza. A gente saia dessa experiência com os ensinamentos necessários para o dia-a-dia. Com verdades escancaradas que as pessoas dos grandes centros urbanos teimam em não enxergar. Isso é muito perigoso para todos nós”.   
Em A morada dos deuses, Carlos Tramontina relata as vistas espetaculares e a cultura milenar dos habitantes do Nepal, o grande sofrimento físico e os perigos reais impostos aos trekkers pela cordilheira do Himalaia, os momentos de êxtase e as profundas transformações pessoais que viveu ao lado de mais oito integrantes de seu grupo de viagem até chegar ao Island Peak, uma montanha com 6.189 metros de altitude que mais parece uma ilha num mar de gelo, situada muito próxima ao Everest.
O Island Peak, que os nepaleses preferem chamar de Imja Tse, ou seja, “o topo do vale”, faz parte da rota dos alpinistas como um interessante ponto de aclimatação e treinamento para as grandes escaladas que os levarão ao Everest, o “teto do mundo”, a 8.850 metros de altitude.


Jornalista Carlos Tramontina – ENTREVISTA


foto: Tive todos os cuidados. Só em equipamentos, levei 37 itens
obrigatórios.


Folha do Meio – Mais do que discursos ecológicos inflamados e estimativas catastróficas de cientistas, essas experiências radicais de contato direto com a natureza promovem uma conscientização mais rápida da importância dos ecossistemas em nossas vidas?
Carlos Tramontina – As pessoas que têm ou tiverem a oportunidade de viver esse tipo de experiência  certamente vão passar a olhar e se relacionar com o planeta de outra forma. Esse é talvez o meio mais eficiente de se atingir o objetivo de conscientização e de promover mudanças na vida prática.  Eu era um cara urbano e hoje não sou mais do mesmo jeito. Em todas as minhas próximas viagens de férias eu quero ter experiências semelhantes às que vivi no Himalaia. No final de 2005 pretendo escalar o Aconcágua, na Argentina, a 6.900 metros de altitude. É o ponto mais alto da América do Sul e sei que lá vou enfrentar condições ambientais ainda mais difíceis, pois se está mais perto da “zona da morte”. O ar é mais rarefeito que o do Island Peak, as temperaturas são abaixo de 30 graus e os ventos podem chegar  aos 100 quilômetros por hora. Não há alojamentos. O trekker só tem sua barraca como abrigo.


FMA – Por que essa opção por cenários tão cheios de dificuldades e perigos como é o caso das montanhas geladas?
Tramontina – O homem tem uma tendência natural de subir; a criança vê uma árvore e quer escalar, não há uma explicação científica para este fato. A montanha oferece um grande desafio: ali está você e a necessidade de integração e respeito com a natureza para atingir sua meta de chegar ao cume  Mas também faz parte do meu projeto pessoal conhecer todos os principais parques nacionais do Brasil. Sempre que tiver um tempo livre vou fazer esse tipo de passeio e tenho a vantagem de há muito tempo praticar esportes, e o ecoturismo exige um bom preparo físico. Sem dúvida alguma é uma experiência muito mais enriquecedora do que viajar para grandes centros urbanos porque os espaços naturais, especialmente os de pouco acesso, nos desafiam do ponto de vista físico, psicológico e nos fazem dar um mergulho profundo em nós mesmos.


FMA – As reportagens sobre turismo ecológico são, em geral, muito sedutoras. Poucas destacam a necessidade de o visitante ter um preparo físico rigoroso para que o passeio seja, até o fim, uma experiência de bem-estar, beleza  e segurança. Na verdade, seu livro faz um importante alerta aos “marinheiros de primeira viagem”.
Tramontina – Para fazer qualquer roteiro, seja para um pico elevado, um parque nacional ou uma simples trilha na mata próxima a uma região metropolitana, onde de alguma forma se tem de enfrentar algumas situações que fogem do nosso cotidiano, é preciso se informar com as pessoas certas sobre o que realmente se vai encontrar no lugar e se preparar de uma forma muito rigorosa, e isso inclui o devido condicionamento físico, alimentação, líquidos, roupas, sapatos e equipamentos adequados.
Minha estada no Nepal teve um baixíssimo índice de mal estar físico porque me cerquei de todos esses cuidados. Só em equipamentos, levei 37 itens obrigatórios. Meus companheiros de viagem sofreram muito mais, eu só tive um episódio de falta de ar. Antes de embarcar, fiz um check-up completo e tive todo um preparo físico, orientado por um treinador, seis meses antes de viajar.


As taxas para ganhar a montanha


FMA – É uma desagradável surpresa descobrir pela leitura de seu livro  que, subir montanhas, é um dos exercícios mais caros do planeta. O governo nepalês cobra 25 mil dólares para um alpinista obter autorização para a escalada ao Everest. Você pagou a menor taxa, 350 dólares, pois “sua montanha” é considerada baixa. Que destino tem essa fortuna arrecadada?     
Tamontina – As taxas são realmente escorchantes e o dinheiro arrecadado não beneficia a população, que vive de forma miserável, nem serve para proteger o meio ambiente, a principal fonte de renda do Nepal. O governo, corrupto, fica com todos os recursos. Nas montanhas mais altas, acima de 8 mil metros de altitude, há fiscais que ficam nos acampamentos-base e somente nessas áreas é que a questão do lixo é realmente enfrentada. 
Nas montanhas mais baixas isso não acontece, todo o lixo é colocado em tambores, que deveriam ser transportados para um centro de reciclagem. Eu fiquei quase vinte dias nas montanhas e não vi ninguém transportando esses tambores. Acho que todos os resíduos são simplesmente enterrados nas proximidades, desde embalagens de alimentos até material usado para higiene. Outro grave problema: a construção, sem qualquer controle, de novos alojamentos e até de hotéis com apartamentos com banho privativo. A região não comporta toda essa complexa estrutura, que provoca destruição das poucas e preciosas árvores que com grande dificuldade conseguem vingar por lá. Esse triste cenário está tomando conta do Himalaia, talvez o último refúgio das grandes montanhas do mundo. Não se pode permitir que isso prossiga.


Saiba mais sobre o livro de Carlos Tramontina acessando www.amoradadosdeuses.com.br


summary


Tramontina: the book demonstrates an insatiable hunger for Nature


After trekking over 200 km through the inhospitable Andes mountain chain, the journalist Carlos Tramontina has revealed that he has just discovered a new world and now he does not plan to stop.   He wants to live new experiences that blend different scenery and people from different places and respectfully and tolerantly delve into diversity that is the basis of life on this planet.
Tramontina’s journey to what he lovingly refers to as “his mountain,” Island Peak, is an experience he tells in a just released book, “A morada dos deuses – Um repórter nas trilhas do Himalaia (The home of the gods – A reporter on the Himalayan trails) (222 pages, Sá Editora). Without a doubt, this São Paulo State native has been transformed by his insatiable appetite for new experiences and a deeper integration with the environment. 
“The cold and the icy mountains always held an enormous fascination for me.  I ended up breaking my own standards by undertaking this vacation trip to Nepal, without any family for nearly one month.  I think that being in contact with the environment in its simplest and crudest way, which at the same time is absolutely straightforward, makes one feel and suffer the impact of nature.  We come out of this experience with the learning necessary for our day-to-day life and with the knowledge that people in large urban centers are afraid to face.  This is very dangerous for us.”
   In the book, “A morada dos Deuses,” Carlos Tramontina narrates the spectacular views and ancient culture of the inhabitants of Nepal, the enormous physical suffering and the real dangers that trekkers on the Himalayan mountain sides are subjected to, the moments of ecstasy and the profound personal transformations which he lived through alongside the more than eight members of his travel mates until arriving at Island Peak, a 6,189 meter high mountain which looks as though it is an island in a sea of ice, located near Mount Everest.  
Island Peak, which the Nepalese, refer to as Imja Tse, or “the top of the valley” is part of the alpinists’ itinerary and is a remarkable acclimatization and training ground for the big climbs which take them to Everest, “the roof of the world”, which is 8,850 meters in height.