ENTREVISTA – Carlos Fernando de Moura Delphim

22 de outubro de 2008

PAISAGEM CULTURAL “Tudo o que é natural pode ser percebido e reconhecido pelo homem como cultural” Folha do Meio – O que é uma paisagem cultural?Carlos Fernando – No Iphan, definimos a Paisagem Cultural Brasileira como sendo uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à… Ver artigo

PAISAGEM CULTURAL


“Tudo o que é natural pode ser percebido e reconhecido pelo homem como cultural”



Folha do Meio – O que é uma paisagem cultural?
Carlos Fernando – No Iphan, definimos a Paisagem Cultural Brasileira como sendo uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Aprendi com a ambientalista Judith Cortesão que tudo o que é natural é também cultural. Um sítio onde o homem nunca tenha pisado, somente o saber humano, a cultura, poderá organizar, compreender e dele fazer uso. Apenas o homem pode conferir valores a um recurso natural, a uma paisagem.


“Enquanto a legislação ambiental protege as unidades de conservação, as feições mais significativas da relação do homem com o mundo natural, competência dos órgãos culturais, ficam totalmente desguarnecidas”.


Folha do Meio – O Brasil se preocupa com suas paisagens culturais?
CF – No momento, sim. Eu, particularmente, sempre me preocupei com a não existência nos órgãos culturais de uma preocupação com a preservação de paisagens, como os órgãos ambientais demonstraram com a conservação da natureza. Uma preservação conjunta do homem e de um meio natural que, embora significativamente alterado sob o ponto de vista do meio ambiente, ainda assim constituem uma unidade com importantes significados ou valores culturais. Enquanto a legislação ambiental protege as unidades de conservação, as feições mais significativas da relação do homem com o mundo natural ficam totalmente desguarnecidas. Por exemplo, unidades como a floresta atlântica  são protegidas por uma infinidade de leis, enquanto exemplos de relação equilibrada do homem com a natureza, como ocorre nos Pampas e no Cerrado, não gozam do menor reconhecimento.  Será que não são igualmente dignas de esforços para o reconhecimento de seu valor e de medidas para sua proteção as paisagens rurais como um vinhedo no Sul ou as velhas fazendas de café no Sudeste? Uma fazenda de cacau no sul da Bahia ou engenhos de açúcar no Nordeste com todo o patrimônio tecnológico ainda preservado, será que não devem compor uma paisagem cultural?


FMA – Há outros exemplos que correm risco de degradação?
CF – Há sim. Existem muitas outras regiões, onde a marca do homem convive em perfeita harmonia com a natureza, que precisam ser preservadas.
A verdade é que os pampas, caatinga, cerrado e a floresta amazônica apresentam incontáveis modelos de convivência harmoniosa e sustentável entre homem e natureza. E estes modelos vêm sendo ameaçados de destruição. O  plantio de árvores para produção de celulose e de cana-de-açúcar para combustível transforma em lixo ou gases poluentes, a riquíssima biodiversidade de um planeta quase agonizante.


 


Carlos Fernando é arquiteto e paisagista formado pela UFMG. Técnico do Iphan e membro da Comissão de Patrimônio Mundial da Unesco, Moura Delphim trabalha com projetos e planejamento para manejo e preservação de sítios de valor paisagístico, histórico, natural, paleontológico e arqueológico. É discípulo de Burle Marx e, hoje, o paisagista favorito do mestre Oscar Niemeyer. Já fez para Oscar vários projetos paisagísticos como o do Memorial da América Latina, em São Paulo, do STJ, em Brasília, e da Universidade Norte Fluminense. Hoje ajuda no restauro dos jardins do Palácio do Planalto.
Pioneiro da restauração de jardins históricos no Brasil, é autor do primeiro manual de intervenções em jardins históricos no mundo. Além disto, emite pareceres sobre sítios propostos para Patrimônio Mundial da Unesco. Graças a um parecer seu, as Florestas Tropicais Úmidas de Queensland, na Oceania, foram declaradas como patrimônio mundial. Seu mais recente estudo é uma nova e vanguardista proposta para a preservação de paisagens culturais no Brasil, no sul do Ceará, onde participou da implantação do Geopark do Araripe.


FMA – Mas qual a importância imaterial?
CF – É preciso ficar claro que juntamente com o patrimônio genético e material, com o legado da natureza, desaparecem as formas de saber e de fazer característicos de cada um desses ecossistemas. Isso constitui a dimensão humana e imaterial do patrimônio, resultado da tão diversificada pluralidade cultural que é o Brasil. A biodiversidade e essa pluralidade, eis o nosso verdadeiro e mais valioso patrimônio.


FMA – O Brasil adota o mesmo conceito de paisagem da Unesco?
CF – Sim, para compor a lista indicativa de bens propostos para Patrimônio Mundial da Unesco, o Brasil adota os critérios exigidos pela Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, da Unesco.
Segundo a convenção, para serem incluídos na Lista do Patrimônio Mundial, os sítios naturais devem satisfazer alguns critérios de seleção. Esses critérios existem para os bens que vão compor uma lista da mais elevada excepcionalidade. No entanto, nós brasileiros, não precisamos olhar para tão longe.  Existem bem pertinho de nós, paisagens totalmente insignificantes para os padrões da Unesco mas nas quais reconhecemos indiscutíveis valores nacionais. Aliás, a comissão da Unesco nos procurou para examinar a proposta de declarar o Rio como Patrimônio Natural na categoria paisagem cultural.


FMA – Pode dar um exemplo?
CF – Vou dar um exemplo bem simplório. Todo brasileiro sabe que nossa terra foi chamada, originalmente, pelos primeiros habitantes, de Pindorama, terra das palmeiras.
Por quê? Justamente porque depois de colonizada pelo branco e impregnada pela forte influência negra, uma casinha pequenina com um coqueiro do lado é uma imagem arquetipal (1).
Ninguém desejaria perder a possibilidade de contemplar essa feliz reunião do homem com a planta eleita pelo primitivo habitante do País para dar nome a nossa terra.
Uma casinha e um butiá no Sul, um jerivá no sudeste, uma guariroba ou buriti no centro-oeste, os coqueirais litorâneos em todo o nordeste, o babaçu, a carnaúba e mais uma infinidade de espécies em toda a Amazônia são, sob um ponto de vista afetivo de nosso povo algo digno de perdurar no tempo e de ser transmitido como um legado, um patrimônio.



“Tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural”.



FMA – Quando nasceram as discussões sobre Paisagem Cultural?
CF – Esta discussão sobre paisagem cultural nasceu após a Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural, Natural da Unesco, em 1972. A Convenção produziu uma Carta Internacional, exprimindo uma visão dicotômica, senão antagônica, entre cultura e natureza.
Mais tarde, ao reconhecer o equívoco, a Unesco passou a adotar apenas uma denominação simplificada para a Convenção, retirando-lhe o Cultural e Natural e passando a considerar a indissociabilidade dos dois conceitos. Porque tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural.


FMA – 1972 foi quando a ONU organizou a primeira Cúpula da Terra sobre meio ambiente, em Estocolmo…
CF – Isso mesmo, e após a segunda grande cúpula da Terra, em 1992, no Rio, a ECO 92, alguns especialistas se reuniram na França, a convite do International Council on Sites and Monuments – Icomos e do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco para pensar as questões sobre paisagem cultural.
A legislação de proteção do patrimônio cultural, no Brasil, surgiu com a promulgação de um decreto-lei em 1937, organizando o patrimônio histórico e artístico brasileiro e criando o conselho consultivo que delibera sobre esse patrimônio.
 Na década de 30 surgiram as primeiras leis de proteção à natureza brasileira, expressas em códigos pioneiros como os códigos florestal, de Águas, de Minas e de proteção aos animais.
É bom lembrar que, modernamente, os parques nacionais brasileiros, sem excluir valores cênicos, enfatizam a preservação de processos ecológicos, de espécies vegetais ou animais ou de ecossistemas.


FMA – Mas a constituição de 1988 abordou a questão de maneira bem pormenorizada…
CF – Sim, a Constituinte de 88 definiu, de forma ampla e pormenorizada, o interesse pelo patrimônio natural e cultural do Brasil, em dois diferentes capítulos. 
O Capítulo sobre o Meio Ambiente trata da conservação da natureza sob um ponto de vista biológico, sendo a responsabilidade legal e administrativa pelo meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela preservação e restauração de processos ecológicos essenciais, pela biodiversidade e pela integridade do patrimônio genético, atribuição de órgãos ambientais.
O capítulo da Cultura declara como patrimônio cultural brasileiro alguns conjuntos urbanos e sítios naturais, sendo a gestão atribuída a órgãos culturais.


FMA – Mas houve evolução?
CF –  Sob a ótica cultural, a legislação pouco evoluiu após 1988, salvo  a contribuição prestada pela Lei da Ação Civil Pública do Ministério Público, que  considera o patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico paisagem como bem difuso. É importante equiparar a paisagem cultural à proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica e à livre concorrência.


 


Pedra da Galinha Choca:
atrativo natural de Quixadá, no Ceará


 


 


 


 


 


Os sítios arqueológicos da Pedra Furada, o cartão postal do Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí, onde está o Museu do Homem Americano


 


 


FMA – Uma paisagem preservada não bate de frente com o desenvolvimento?
CF – A paisagem cultural não é uma declaração compulsória efetuada por órgãos do poder público. É uma decisão democrática da população. Expressa, de forma perfeitamente democrática, a vontade que tem cada grupo de proteger os cenários mais valiosos de sua sociedade. Respondendo à sua pergunta, a declaração de Paisagem Cultural convive com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis. Aliás, valoriza a motivação responsável pela preservação do patrimônio.


FMA – E quais são as providências já tomadas?
CF – Inicialmente, o presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, assinou a criação de um grupo de trabalho para reconhecimento de partes do território brasileiro como Paisagem Cultural. O grupo analisou pedidos de reconhecimento de paisagens tais como os céus de Brasília, a paisagem do Vale do Ribeira, em São Paulo e do Parque Histórico das Missões, no Rio Grande do Sul, entre outras.
O objetivo da declaração de paisagem cultural é conferir um selo de reconhecimento de porções singulares dos territórios, onde a inter-relação entre a cultura humana e o ambiente natural conferem à paisagem uma identidade singular.


FMA – Seria um certificado, uma certificação?
CF – A finalidade é proteger a paisagem cultural. Não se trata de um ato de proteção, mas de uma chancela. Algo como certificação, semelhante ao ISO 14000. O pacto firmado é definir normas para uso e gestão da paisagem, tendo em vista sua defesa e cuidando para que sua qualidade seja sempre melhorada. Não é como um tombamento. Quem não cumprir os compromissos assumidos em um pacto comum, perderá a chancela de valor e qualidade como paisagem Cultural Brasileira, quando declarada por órgãos federais, estaduais ou municipais.


FMA – Voltando à pergunta anterior, como está o Grupo de Trabalho?
CF – O grupo de trabalho já terminou a versão da portaria criando a paisagem cultural, que foi encaminhada à Jurídica do Iphan para aprovação e subseqüente publicação no Diário Oficial.


FMA – Como declarar uma paisagem cultural?
CF – Segundo a Portaria, toda pessoa física ou jurídica poderá provocar, mediante requerimento, a instauração do processo de chancela da Paisagem Cultural Brasileira.  O requerimento para a chancela da Paisagem Cultural Brasileira, acompanhado da documentação adequada, deve ser encaminhado às Superintendências Regionais do IPHAN, em cujas áreas de jurisdição o bem se situar. Evidente que o processo pode, também, ter início na presidência nacional do IPHAN ou no próprio gabinete do ministro da Cultura. Daí para frente são procedimentos internos para instrução do processo administrativo, celebração de um pacto de gestão da Paisagem Cultural e publicação no Diário Oficial.


FMA – Quais as vantagens para uma área ser declaração paisagem cultural?
CF – São várias. A começa: uma Paisagem Cultural propõe uma ação sistêmica e abrangente, integrada e articulada, envolvendo não apenas órgãos da administração pública como também de toda a sociedade civil. A Paisagem Cultural é um instrumento que exige novas formas de ação para a proteção dos diferentes elementos que compõem este patrimônio, envolvendo e convocando à participação as liberdades públicas e individuais. Supõe-se que cada órgão público ali passe a exercer sua fiscalização de forma mais rigorosa. Por se preocupar com a sustentabilidade, os produtos regionais poderão ostentar um selo de qualidade com a chancela do órgão cultural o que, certamente irá valorizá-lo.


FMA – No seu ponto de vista, quais as mais expressivas paisagens culturais que deveriam ter prioridade para declaração?
CF – De fato, existem paisagens significativas tanto sob o valor histórico, como artístico, geológico, geomorfológico, científico, paleontológico, espeleológico, hidrológico, arqueológico, rural, religioso e simbólico. Tudo isto e muito mais como sítios de valor florístico, faunístico, ecossistêmico, edáfico, legendário, mítico, sagrado, étnico, ambiental, industrial…


 


O espetáculo de cores da Gruta Azul, na Chapada Diamantina, é uma paisagem imperdível para turistas e amantes da natureza


 


 


 


A entrevista continua. Ver As mais significativas paisagens culturais”