Lendas do rio São Francisco – Série Expedição Américo Vespúcio XIV

O milagre das Veredas

20 de março de 2013

  Para descobrir as Minas por onde descemos na barca PIPES, é preciso se enveredar pela obra de Guimarães Rosa e assim conhecer a outra metade. As Minas são muitas e as Gerais outro tanto. Para as caatingas e sertões baianos e nordestinos, nada como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos.       Mas… Ver artigo

 

Para descobrir as Minas por onde descemos na barca PIPES, é preciso se enveredar pela obra de Guimarães Rosa e assim conhecer a outra metade. As Minas são muitas e as Gerais outro tanto. Para as caatingas e sertões baianos e nordestinos, nada como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos.
 
 
 
Mas grandes empresas e fazendeiros as degradam, ou construindo barragens para irrigar terras, ou drenando-as para pastagens de braquiária e cultivo de eucaliptos e cereais no cerrado. O “carvoejamento”, a queima de árvores vivas para carvão, é um dos mais feios e tenebrosos espetáculos que já vi. É a Idade Média no século XXI, uma perpetuação do trabalho desumano a que eram submetidos aqueles pobres diabos das minas de carvão e limpadores de chaminés. Homens, mulheres e crianças aí vivem em regime de escravidão em lugares ermos, até um dia serem flagrados e denunciados.
A propósito, sobre o desmatamento em qualquer latitude, recordo que o povo indígena ayoreos-totobiegosode, do Chaco paraguaio, chamam os tratores que invadem suas terras de eapajocacade, que significa “invasores do mundo”.
O Cerrado e as Veredas, tal como ocorreu com a Mata Atlântica, precisam ser salvaguardados como reservas da Biosfera. Desprotegidos, grandes reflorestadoras, cerealistas e fazendeiros de gado assolam toda a região queimando para carvão seculares braúnas ou pau-preto, aroeiras, ipês ou pau-d´arco, jatobás (nosso cedro-do-Líbano), pequizeiros (a azeitona dourada brasileira) e tantas outras, pondo abaixo até os buritizeiros (nossas tamareiras) e a lista continua muda. Desde as veredas com seus buritizeiros até os esbeltos embarés ou barrigudas (Cavanillesia arborea) o “baobá brasileiro”, como os denomino, tudo vai abaixo. E o que dizer aqui do nosso pau-brasil das verdes florestas, que fervilhou até quase a extinção como tinta-de-fogo para tecidos? E da sua acústica madeira não soa a suave música dos violinos?
Faço esse exercício para mostrar que muitos povos criaram tradições, lendas, folclore e agregaram valor e proteção às árvores que hoje são símbolos nacionais e produtos de exportação. Creio que até um sobreiro tropical, uma “cortiça brasileira” possa surgir das cascudas e enfezadas árvores do cerrado. 
Por vários séculos a natureza quase selvagem foi preservada, mas desde meados do século 20 ou mais recente o Cerrado entrou na escala econômica como produtor de grãos. Mas nem por isto será apenas moeda de troca ou gerador de riqueza concentrada, é preciso salvar do extermínio grandes áreas ainda existentes para unidades de conservação. Ou teremos o Grande Deserto Brasileiro, desde a capital federal plantada no Cerrado, até os rincões amazônicos. 
E aqui e ali, rios efêmeros, temporários, com cheias diluvianas anuais.  Nos atlas “Os Caminhos do Ouro e a Estrada Real”, 244p. (2005), e “Roteiro Prático de Cartografia da América Portuguesa”, 255p. (UFMG e Kapra Editorial Lisboa – 2007) percorremos os caminhos e veredas traçados pelos desbravadores rumo ao desconhecido, cujas referências principais eram os rios e serras. 
Há dez anos, descendo o rio São Francisco na Expedição Vespúcio, observando as margens desnudas de matas ciliares, e a paisagem ocupada pelos capins africano braquiária e buffel a emitir ondas de calor, um clima de desventura invade a barca PIPES, que ao passar com seu monótono pópópó, põe em fuga rebanhos de bois nelore. Isso não é riqueza, é fazer desertos, um agressivo processo de desertificação que ocorre nessa região semi-árida. Constatando a dura realidade, o que podemos fazer?
A realidade por que passa o mundo natural e as culturas tradicionais não é nada encorajadora. O pescador Lico Paiva vai a bordo e é testemunha ocular. Vamos até ele pedir sua opinião, mas está a cada dia mais taciturno, responde sempre filosoficamente “o mundo acabou”, o que nos leva aos filósofos gregos. 
Simonide de Céos foi o primeiro a formular a diferença entre a pintura e a poesia para retratar a realidade. Platão em A República (O mito da caverna) e O Sofista, fez a analogia entre o real, a cópia e o simulacro (imagem), creditando essa analogia ao poeta Simonide. Segundo Plutarco, “Simonide chamou a pintura de poesia silenciosa e a poesia de pintura que fala, pois a pintura pinta as ações enquanto elas acontecem, as palavras as descrevem uma vez terminadas”. Heráclito está sempre afirmando que nem o rio nem eu serão os mesmos após a travessia. 
As veredas que ora vão passando à nossa vista, ou expressas nos quadros de pintura, ou poeticamente descritas em O Buriti, leva-nos a pensar da insensatez e irracionalidade em por abaixo frágeis ecossistemas e os extensos biomas que os cercam. Para descobrir as Minas por onde descemos na barca PIPES, é preciso se enveredar pela obra de Guimarães Rosa e assim conhecer a outra metade, que as Minas são muitas e as Gerais outro tanto. Para as caatingas e sertões baianos e nordestinos, nada como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos.