Série Expedição Parnaíba Vivo - iii

Lendas do Velho Monge

27 de agosto de 2014

  O idealizador e o primeiro brado para salvar aquelas águas veio de um jovem juiz de direito em Alto Parnaíba, doutor Marlon Reis. Ele dizia nas audiências públicas ribeirinhas que para limpar os rios haveria que se limpar antes a política cartorial que nos enxovalha e empobrece.      “Velho Monge! Velho Monge!”. Canta… Ver artigo

 
O idealizador e o primeiro brado para salvar aquelas águas veio de um jovem juiz de direito em Alto Parnaíba, doutor Marlon Reis. Ele dizia nas audiências públicas ribeirinhas que para limpar os rios haveria que se limpar antes a política cartorial que nos enxovalha e empobrece. 
 

 

“Velho Monge! Velho Monge!”.
Canta o mavioso xexéu¹
Preso na gaiola veio de longe
Pés na grade os olhos no céu…
“Crá! crá! crá! É monge! É velho!”.
Grasnam as araras azuis n’uma só voz
De Alto Parnaíba a Parnaíba
Voando livres da nascente a foz
E subindo de volta ai-jesus
Do Delta aos altos dura subida...
 
 
E descemos, dia após dia, o rio selvagem. Chovia a cântaros, cachoeiras e troncos boiando eram vencidos. Araras azuis em bando ou casais desgarrados seguiam o curso do rio. Bandos de jacus agitados mudavam de galho. Martins pescadores mergulhavam. Aqui e ali, nas corredeiras, cardumes de peixes em piracema, saltavam das águas. Aquele mundo biodiverso ainda era deles. 
Corria o mês de abril de 2001, quando um grupo de ambientalistas algo visionários embarcou no barco PIPES² na cidade maranhense de Alto Parnaíba, defronte à também pequenina Santa Filomena no Piauí. O barco largou em disparada nas águas barrentas e revoltas, chovia sem parar nas cabeceiras. E assim, navegamos naquele rio ainda selvagem no seu terço superior e moribundo nos terços inferiores. Foi trasladado na barragem de Boa Esperança e rio abaixo chegamos ao delta na bela cidade de Parnaíba e daí ao mar em Luiz Correia, ora assustados, ora cantando com Valtinho ao violão:
Oh, doce rio de fronteiras lado a lado,
Fonte de vida, riqueza, folclore e tudo o mais… 
Oh, Parnaíba do arroz-maria-isabel,
Rio de buritizais, carnaubais e babaçuais 
Oh, Velho Monge, pelo poeta cantado
Onde um dia correrá leite e mel…
 
Dessa aventura, surgiu meu diário de bordo “Navegando no Velho Monge”, onde narro minha visão do maior rio totalmente nordestino, como representante da Codevasf. Também relatos de cada expedicionário, em número de dezoito, descreveram a aventura  organizada pelo Centro de Defesa das Nascentes do Parnaíba. Nesse dia, foi assinada e publicada a Carta do Parnaíba e criado o Parque Nacional das Nascentes do Parnaíba. E o grito de guerra ecoou das Mangabeiras e Tabatinga ao Delta, sob a sinfonia das livres araras e do preso xexéu. “É preciso salvar o Velho Monge!”. O que nos movia era o sonho.
O idealizador e o primeiro brado para salvar aquelas águas veio de um jovem juiz de direito em Alto Parnaíba, doutor Marlon Reis. Ele dizia nas audiências públicas ribeirinhas que para limpar os rios haveria que se limpar antes a política cartorial que nos enxovalha e empobrece. Em cada cidade onde atracávamos à noitinha, era dada a palavra aos ribeirinhos, que, entre revoltados e esperançosos, pediam escolas, o fim da devastação do cerrado pelos sulistas, o saneamento do esgoto, o tratamento do lixo, a água tratada, a recuperação das matas ciliares (já ausentes nos cursos médio e baixo do rio), cujos barrancos desabam como castelos de areia. Mais tarde, o juiz-cantor soltava a voz em “Bilhete do Parnaíba”. Era o sinal, e todos caíam na balada brega parnaibana.
De Amarante, avista-se a cidade maranhense de São Francisco na margem oposta, com suas serras em mesetas. Um dia, o poeta amarantino Da Costa e Silva cantou o rio que corre na sua aldeia, sua melancolia e as águas do rio em Saudade:
 
Saudade! Olhar de minha mãe rezando/E o pranto lento deslizando a fio…
Saudade! Amor da minha terra… o rio/Cantigas de águas claras soluçando.
Noites de junho… o caburé com frio,/ao luar sobre o arvoredo, piando, piando…
E ao vento, as folhas lívidas cantando/A saudade imortal de um sol de estio
Saudade! Asa de dor do Pensamento!/Gemidos vão de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a terra…/Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando… E, ao longe,/O mugido dos bois da minha terra...
 
E assim a voz do rio e dos pescadores se tornaram versos na voz do poeta, que se tornaram lenda parnaibana:
Era uma vez… Um poeta já velho e cansado sentou-se às margens do Parnaíba em Amarante, onde caem as águas do Canindé. Como o rio corria lento, recoberto pela névoa prateada, comparou aquela paisagem a um tranqüilo e velho monge, ora triste, ora alegre. E, assim, o grande rio nordestino de bela metáfora virou lenda. Outros dizem que o poeta viu as suas águas baixas e rasas, mostrando os bancos de areia branca e fina, o rio se ramificando em filetes, os fios da barba de um velho monge… Ou que o poeta ouviu dos pescadores que na foz de cada afluente caindo no rio maior se formam espumas brancas e densas como neve, o rio de barbas brancas e hirsutas. E o bardo, na sua imensa saudade, sentiu-se tão velho como o velho Parnaíba de barbas brancas. 
 
¹Xexéu (Molothrus bonariens).
²PIPES – Pedro Iran Pereira Espírito Santo, empresa de navegação de Carolina/MA. Alto Parnaíba, 16/04/2001