NATURALISTAS VIAJANTES – Parte 6

FREYREISS, ESCHWEGE E MARLIÈRE: Caminhos que se cruzam no interior do brasil.

5 de junho de 2017

As histórias dos naturalistas viajantes são saborosas, interessantes e culturalmente muito ricas. Em reportagens anteriores, a Folha do Meio Ambiente mostrou o trabalho de pelo menos 20 naturalistas que se realizaram com os estudos das matas, montanhas, rios, flora, fauna e a população indígena e de ribeirinhos que habitavam o Brasil de norte a sul… Ver artigo

As histórias dos naturalistas viajantes são saborosas, interessantes e culturalmente muito ricas. Em reportagens anteriores, a Folha do Meio Ambiente mostrou o trabalho de pelo menos 20 naturalistas que se realizaram com os estudos das matas, montanhas, rios, flora, fauna e a população indígena e de ribeirinhos que habitavam o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Todos eles vieram para o Brasil por uma paixão desenfreada pela mega diversidade do solo brasileiro. Todos deixaram a tranquilidade e o conforto da Europa para se embrenharem por terras inóspitas em busca do conhecimento total pelas ousadas pesquisas e por estudos mais aprofundados da natureza exuberante e misteriosa de um país continental chamado Brasil. Esses relatórios, desenhos e pesquisas estão hoje em várias universidades, bibliotecas e academias de ciências espalhados pelo mundo. Nesta série de reportagens, que está na Parte 6, estamos contando a grande viagem de Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), Wilhelm Ludwig von Eschwege  (17771855) e de Guido Thomaz Marlière (França 1767 – Minas Gerais 1836).

 

 

FREYREISS E OS INDÍGENAS

Os caminhos dos naturalistas Georg Wilhelm Freyreiss, Wilhelm Ludwig von Eschwege e de Guido Thomaz Marlière se encontraram no interior do Brasil. As histórias dos naturalistas viajantes são saborosas, interessantes e culturalmente muito ricas. Na Parte 6, Freyreiss dá o testemunho de uma região mineira onde estão Viçosa e Guiricema. Uma noite na aldeia dos índios e a sensação de amizade com os selvagens brasileiros. 

 
O testemunho de uma região onde estão Viçosa e Guiricema. Uma noite na aldeia dos índios e a sensação de amizade com os selvagens brasileiros
 
 
 
 
A MÚSICA INFERNAL DURANTE A NOITE
 
O depoimento de Freyreiss é o testemunho dos estertores da civilização original da região onde hoje estão as cidades de Viçosa, a antiga Santa Rita, e Guiricema, a Santana dos Ferros de então.
 
“Às 3 horas chegamos a Santa Rita, uma aldeia a cinco léguas de Santana e a uma da mata dos Puris. Aí estavam todas as casas cheias de gente que tinham vindo assistir a festa, de modo que só havia o meio de dirigirmo-nos à casa do padre, na esperança de encontrar abrigo, porém, isso não foi possível. Tivemos, pois, de continuar o nosso caminho até uma fazenda a um quarto de légua mais adiante. Fomos muito bem recebidos, porém, não tivemos descanso por causa dos muitos escravos que se tinham reunido no terreiro da casa, onde dançaram a noite toda, com uma música infernal e uma gritaria insuportável, tal qual Langsdorff o tinha descrito em Santa Catarina”.
 
“O indígena bravo anda completamente nu. Em algumas tribos os homens costumam amarrar o prepúcio por fora da glande, alegando que isso impede a entrada dos insetos”.
 
“As mulheres raras vezes têm mais de 4 filhos, o que é tanto mais surpreendente quanto as de origem europeia são geralmente muito prolíferas no Brasil. Logo depois de nascida uma criança a mãe corre para a água próxima, rio ou riacho, para proceder à necessária lavagem. A conhecida observação que o pai nesta ocasião se finge doente, e permanece deitado durante dias, achei aqui confirmada por várias testemunhas oculares”.
 
O POUSO COM OS ÍNDIOS
 
O trecho em que narra o pouso entre os índios é saboroso e vale a pena ser transcrito integralmente: 
“Depois desta visita fui muitas vezes à mesma aldeia durante as minhas excursões para colecionar objetos de História Natural. Umas vezes fui só e outras vezes em companhia de um menino da tribo Coropó, porém ainda não me tinha arriscado a pernoitar entre eles, até que, uma tarde, quando voltava para o presídio, uma tremenda borrasca surpreendeu-me na mata, perto da cabana dos índios. Trovoadas e tempestades como aquelas são perigosas na mata, especialmente por causa das milhares de árvores colossais que o ciclone derruba, tanto por serem já muito velhas como por estarem em geral mal enraizadas, segundo observações feitas sobre árvores brasileiras. Acresce que estes gigantes estão quase sempre presos às outras árvores por meio de milhares de cipós e, quando caem, arrastam tudo na queda e quebram um porção de outras árvores. Imaginando mais a escuridão completa, interrompida apenas pelos relâmpagos, e a trovoada a roncar incessantemente, impedindo o ouvido de escutar o barulho das árvores que caíam e verdadeiras cataratas de chuva a se despejarem das nuvens, fazendo crescer num momento os riachos e os córregos, tem-se a situação perigosa e difícil da permanência na mata durante uma tempestade”.
 
 
A TEMPESTADE ME DEIXOU NU COM OS ÍNDIOS
 
“Foi, pois, uma tempestade destas que me obrigou a pedir abrigo entre os amigos índios. Acompanhado do menino Coropó, cheguei às cabanas totalmente molhado porque, além da chuva, tive de atravessar a vau vários córregos engrossados de modo a chegar-me a água até ao peito. O primeiro cuidado naturalmente foi o de tirar a minha roupa ensopada, porém, com que havia eu de cobrir-me, pois nenhuma camisa existia na cabana? Os índios estavam todos nus e zombavam do meu embaraço até que uma índia, de cerca de 16 anos, compadeceu-se e por mímica ofereceu a sua tanga, único vestuário que possuía. Como era natural recusei, visto que todas as mulheres presentes conservavam as suas tangas e só me restava unir-me àquela sociedade nua ao redor do fogo. Mas por muito tempo continuava eu objeto de sua curiosidade por ser a minha pele diferente da deles. Percebendo isso e na suposição de que nunca tinham visto europeus nus, aproveitei-me desta curiosidade em meu favor porque, conhecendo o seu ódio aos portugueses, fiz o meu Coropó, que entendia a língua deles, contar-lhes que eu não era português, mas sim de uma grande nação que existia para o Norte. Deste momento em diante crescia a sua confiança que eu, aliás, já tinha procurado  ganhar com pequenos presentes”.
 
A GENEROSIDADE DE UMA VELHA ÍNDIA
 
“A mais velha das mulheres recebeu então ordem – provavelmente do marido, que parecia da mesma idade – de cozinhar um pouco de milho para mim, mas, como não havia milho na cabana, nem lenha, opus-me a esta generosidade, porque a trovoada ainda roncava e a chuva ameaçava-nos com outro dilúvio. Mas nada adiantou. A pobre mulher teve de sair e somente depois de uma boa meia hora voltou com a lenha, água e milho. Este último ainda não estava maduro, o que entretanto não importa, porque os índios só comiam milho verde feito mingau. Regalei depois os meus hóspedes com um pouco de aguardente que tinha comigo, o que muito lhes agradou, pois, esta bebida tem para eles um valor inestimável e torna-se facilmente o ídolo ao qual sacrificam o ganho de suas caçadas e de seu trabalho. Felizmente a minha provisão, desta vez, chegava apenas para dar-lhes um pouco de alegria, sentimento este que raras vezes observei em selvagens no Brasil”.
 
UMA REDE PARA DORMIR POR ALGUNS ANZÓIS
 
“Tinha chegado a noite e se eu não quisesse dormir no chão, precisava pedir que me cedessem uma das redes na cabana, mas notei que os velhos estavam com pouca vontade de dar-me uma das suas. Finalmente uma índia moça tirou-me do embaraço, cedendo-me a sua, cuja fineza retribuí com alguns anzóis. Pouco depois o meu jovem companheiro Coropó estava também deitado, roncando numa outra rede, cedida pela irmã da minha benfeitora. Assim mesmo fiquei meditando se era prudente entregar-me ao sono que imperiosamente me invadia. O que valia, porém, ficar eu acordado se os índios tivessem deliberado eliminar-me? Minha pólvora estava acabada, apenas tinha para 3 tiros e esta mesma estava estragada pela chuva. Adormeci, pois, mas dúvidas e receios acordaram-me repetidas vezes durante a noite. Fiz então a observação de que o sono dos índios é desigual e interrompido porque os vi várias vezes pôr lenha no fogo durante a noite e, às duas horas da madrugada, alguns se levantaram para assar milho.
 
Na manhã seguinte, ao raiar o dia, deixamos esta gente simples, depois de tê-la presenteado com algumas agulhas e anzóis. Teríamos caminhado cerca de meia légua quando um dos índios da cabana, onde tínhamos pernoitado, nos alcançou, todo arquejando, e entregou-me umas folhas de papel que eu tinha usado para prensar plantas e que ficaram esquecidas num canto. Por essa e outras ações idênticas, ganharam os índios a minha estima”.
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO – 280 – Julho de 2017 – Parte 7 – A cultura indígena é diferente. Índio não conhece o medo. Pelo menos não o medo da guerra. Entre os índios há um provérbio que diz: o homem foi criado para morrer na peleja e a mulher para dar novos homens.