NATURALISTAS VIAJANTES

Freyreiss, Eschwege E Marlière: caminhos que se cruzam pelo brasil – parte 7.

3 de julho de 2017

  CURIOSAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CULTURA INDÍGENA   A cultura indígena é diferente. Índio não conhece o medo. Pelo menos não o medo da guerra. Entre os índios há um provérbio que diz: o homem foi criado para morrer na peleja e a mulher para dar novos índios.   Georg Wilhelm Freyreiss faz curiosas observações… Ver artigo

 

CURIOSAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CULTURA INDÍGENA
 
A cultura indígena é diferente. Índio não conhece o medo. Pelo menos não o medo da guerra. Entre os índios há um provérbio que diz: o homem foi criado para morrer na peleja e a mulher para dar novos índios.
 
Georg Wilhelm Freyreiss faz curiosas observações sobre a cultura indígena que seriam aproveitadas mais tarde por outros viajantes. São igualmente saborosas e merecem transcrição as partes em que comenta as tentativas de se evangelizar os nativos: 
 
 
 
 
 
 
VINGANÇA DOS ÍNDIOS
 
“Como entre quase todas as tribos, reina entre eles ainda o costume de se vingarem cada vez que algum membro de sua família foi assassinado e, como o assassino quase nunca é entregue pelos seus, matam, logo que podem, qualquer outro da família do assassino, uma mulher pelo marido, uma irmã pelo irmão, um filho pelo pai e assim sempre o inocente pelo culpado. Conseguindo isso, cessam as hostilidades e a amizade antiga reina de novo entre eles. Medo, o índio não conhece, pelo menos não o medo da guerra, e entre eles há o provérbio de que o homem foi criado para morrer na peleja e a mulher para dar novos homens. (…)
 
 
FESTA DE ÍNDIOS: NASCIMENTO E CASAMENTO
 
“Com o mesmo silêncio com que um Coroado abandona este mundo, faz ele também a sua entrada nele; nenhuma cerimônia ou festa reúne os vizinhos por ocasião de um nascimento e até os casamentos se efetuam em silêncio. O noivo leva consigo a noiva que comprou dos pais. Acontece, porém, muitas vezes que a mulher deixa o marido depois de poucas semanas, um costume que é tanto mais estranho por isso que em todos os outros casos é ela tratada como escrava. Este abandono do marido é tão frequente que se encontram muitas jovens índias que no espaço de um ano, e por simples capricho, mudaram de marido 5 ou 6 vezes. (…) 
 
Também são muito acanhadas as ideias de cristianismo ministradas aos índios e como exemplo pode servir a seguinte anedota: Num passeio,  o Sr. Marliére tinha levado um cãozinho. Este foi atacado por uma porção de porcos famintos que o teriam matado se o Sr. Marliére  não tivesse acudido, mas já estava em estado lastimoso. Como era longe pra voltar à casa, o Sr. Marliére deixou o cão a um Coroado para ser curado. Dois dias depois veio o índio e contou que o cachorrinho tinha morrido, ‘mas’, acrescentou ele ‘como o cão era de um amigo, enterrei-o e pus uma cruz no túmulo”. 
 
 
 
CRENÇA E IDOLATRIA
 
“Uma boa prova da sua reflexão, deram-me estes índios numa ocasião. Tinha-se contado aos índios batizados há pouco a história de São Manuel, não poupando as narrações dos milagres. Ao mesmo tempo estava-se construindo uma igreja no presídio e no dia da inauguração da capela provisória a imagem se São Manuel devia ser ali depositada. Curiosos por conhecer o milagroso Santo, muitos índios tinham chegado, mas, quando viram que a imagem era de madeira, voltaram todos para as suas matas. Acreditavam que se fazia caçoada deles e diziam que o Santo era de pau e que pau só era pau e não tinha ação alguma. Este caso é uma prova de que estes índios não conhecem a idolatria nem admitem a presença de entes superiores nas imagens mortas e que possuem bom senso”.
 
 
 
MEU PEQUENO INDIO E O TEATRO
 
“Pode-se tirar um selvagem brasileiro de suas matas e tratá-lo do melhor modo, que ele sempre estimará, acima de tudo, poder voltar para seus patrícios. Esta observação tão conhecida eu fiz, também, quando trouxe para o Rio de Janeiro um pequeno índio, que voluntariamente me acompanhava. Procurei fazer tudo para tornar-lhe sua estada agradável, não só por causa da confiança que ele tinha em mim, seguindo-me, como também por ser um moço muito inteligente que falava as línguas de quatro tribos diferentes e era caçador habilíssimo que podia ser-me de grande utilidade nas minhas futuras excursões. Porém, divertimento algum o impedia de todos os dias pedir-me que fizesse uma nova viagem especialmente para os índios. Por uma casualidade, a estada no Rio tornou-se ainda mais odiosa para o moço desconfiado. Tinha pensado proporcionar-lhe um grande prazer levando-o ao teatro, mas felizmente, escolhi uma peça com muitas transformações. Nunca tinha visto o meu selvagem mais contente do que no começo da comédia; quando, porém, no segundo ato, houve uma fingida decapitação, muito bem representada, o meu jovem índio levantou-se e fugiu aterrorizado e por nada pude obrigá-lo a acompanhar-me outra vez ao teatro”.
 
 
PADRE DE RIO POMBA
 
“Uma prova ainda melhor de quanto é forte a sua saudade do lar e do modo de vida livre e bruto das matas, foi-me fornecida pela história de um padre na comunidade do Rio Pomba. Este padre era Coroado nato que, em criança tinha vindo para o bispo em Mariana, que o educou no intuito de dar aos índios um padre de sua própria raça, um pensamento que merece todo o aplauso. Efetivamente, o nosso Coroado chegou a ser padre e, condecorado com o hábito de Cristo, foi mandado para a comunidade converter os seus patrícios. Durante muitos anos, cumpriu ele aí o seu dever para grande satisfação da Igreja, quando, repentinamente, acordou-se nele a vontade de mudar a sua vida de padre para a que tinha levado em criança. Despiu a sotaina, deixou o hábito de Cristo e tudo mais e fugiu em procura dos seus patrícios nus, entre os quais começou a viver como eles, casou com várias mulheres e até hoje ainda não se arrependeu da mudança”.
 
 
AS SUPERSTIÇÕES, TRABALHO DAS
MULHERES E ESCRAVOS MARCADOS
 
Freyreiss experimenta a alteração da religiosidade brasileira para o patamar da superstição e recomenda que o viajante estrangeiro siga sempre os costumes locais: 
 
 
 
ÁGUA BENTA – “A superstição torna isso muito necessário como tive de verificar um dia num povoado. Era por ocasião da saída de uma igreja onde eu tinha assistido à missa. Um patrício meu queria mostrar-me a sua amizade e, como de costume, espargir-me com água benta. Infelizmente, porém, eu não tinha compreendido a sua intenção, de modo que recuei bruscamente quando senti a água fria no meu rosto. Como eu era o único estrangeiro no lugar, todos reparavam em mim e imediatamente espalhou-se o boato de que eu, por causa do medo que tinha mostrado, estava possuído por algum espírito maligno, a quem a água benta horrorizava. O caso chegou a tal ponto que de tarde mandaram-me um padre para salvar minha pobre alma, preferindo eu, porém, abandonar para sempre e de noite aquele lugar”.
 
O capitulo final de seu pequeno livro é dedicado a alguns aspectos do quotidiano do Rio de Janeiro, em plena vigência da escravidão e observados antes de sua viagem com Eschwege: 
 
TRABALHO E VESTUÁRIO – “Os trabalhos das mulheres, que pouco se preocupam com os arranjos da casa, entregues às escravas, são de costura, bordados e a confecção de flores artificiais e artefatos de casa. (…) O vestuário delas é muito preferível ao das nossas mulheres, porque visa mais a comodidade do que a forma e, de fato, poucas brasileiras há que conhecem o uso do espartilho e menos ainda as que usam dele”.
 
A forte impressão que sente nas visitas ao mercado de escravos na rua do Valongo e ao cemitério que acolhe os negros mortos antes de serem vendidos é cruamente registrada: 
 
ESCRAVOS MARCADOS“É uma sensação especial a que se apodera de quem pela primeira vez visita uma casa desses traficantes de carne humana e é pena que tão poucos ali entrem sem outros sentimentos mais do que aqueles com que se entra numa feira de gado. Para rebaixar ainda mais a humanidade marcam-se os escravos na África quando são pagos os impostos da coroa. Esta marca é feita com ferro quente sobre a pele; vi várias moças nas quais tiveram a crueldade de por a marca no seio, ainda não formado”.
 
“Sabe-se por experiência que um escravo nascido no Brasil fica mais caro do que o importado da África, razão por que se impede de todos os modos que as escravas se casem, principalmente no litoral”.
 
Na opinião de Freyreiss, Langsdorff “excede-se quando acredita ser fácil encontrar entre as negras a Vênus de Médici e teria certamente de perder muito tempo se ele a procurasse sem a cabeça da Vênus e a cor inimitável da mulher européia”.
 
 
O CEMITÉRIO INDÍGENA
 
“Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre à escravidão. Em companhia do meu amigo, Dr. Schaeffer, que chegou aqui a bordo do navio russo Surarow em maio de 1814, em viagem ao redor do mundo, visitei este triste lugar. Na entrada daquele espaço, cercado por um muro de cerca de 50 braças em quadra, estava assentado um velho com vestes de padre lendo um livro de rezas pelas almas dos infelizes que tinham sido arrancados de sua pátria por homens desalmados, e a uns 20 passos dele alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra seus patrícios mortos e, sem se darem ao trabalho de fazerem uma cova, jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro. No meio deste espaço havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saiam restos de cadáveres descobertos pelas chuvas que tinham carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não haviam sido enterrados. Nus, estavam apenas envoltos numa esteira, amarrada por cima da cabeça e por baixo dos pés. Provavelmente procede-se ao enterramento apenas uma vez por semana  e como os cadáveres facilmente se decompõem, o mau cheiro é insuportável.  
 
“A mulher se acostuma com mais facilidade à escravidão. Em todas as partes do mundo é ela mais ou menos escrava e suspira debaixo do peso do trabalho. (…) (Os homens) deixam todo o trabalho para a mulher e apenas consideram a caça como sua obrigação. Não é estranhável por isso que as escravas trabalhem com mais gosto e se acostumem com mais facilidade à escravidão, que já conhecem de casa”.
 
No derradeiro parágrafo de sua narrativa, deixa clara sua intenção de retornar ao convívio dos indígenas e observá-los com mais vagar. Certamente cativado pelas mesmas características que testemunhou em seu pouso forçado em uma aldeia dos “amigos índios”.  
 
 
 
 
PRÓXIMA EDIÇÃO – 281 Agosto – Parte 8 – Entre os anos de 1815 e 1816, Freyreiss participa da expedição de Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied, naturalista, etnólogo, explorador e príncipe de Wied-Neuwied (1782-1867), do Rio de Janeiro ao Sul da Bahia.   [Ver www.folhadomeio.com.br ~ edições 267 (junho 2016)  a 273 (dezembro 2016). De regresso da expedição, Freyreiss é nomeado naturalista real e participa de atividades acadêmicas como professor de zoologia no Rio de Janeiro.